terça-feira, 24 de maio de 2011

02. Virtudes e condições

Vimos que a atividade política, entre todas as atividades seculares, é uma das mais elevadas, pois é a mais diretamente dedicada ao bem comum dos homens. Vimos também como a Igreja, especialmente nos últimos tempos, exorta aos fiéis leigos a que participem nela, pois é parte de sua própria vocação secular. Em todo caso, várias virtudes e condições importantes são necessárias para que os cristãos possam dedicar-se à atividade política concreta.

1.– Vocação. Todos os cristãos, sem dúvida, estão chamados por Deus a colaborar politicamente para o bem comum, cada um em sua família e seu trabalho, como cidadãos ativos e responsáveis, atuando de quantos modos lhes sejam possíveis. Mas é também fora de dúvida que para dedicar-se mais concretamente ao trabalho político o cristão requer uma vocação especial* que só uns poucos recebem de Deus. Esta verdade se esqueceu um tanto nos decênios pós-conciliares, quando a exaltação do compromisso político dos cristãos foi máxima. Por isso Maritain viu a necessidade de recuperar a verdade perdida neste ponto:
"Não basta dizer que a missão temporal do cristão é em si assunto dos leigos. É preciso dizer também que não é assunto de todos os leigos cristãos – aliás, muito pelo contrário! – senão somente daqueles que, em razão das circunstâncias, sentem a este respeito isso que se chama uma vocação próxima. E convirá acrescentar ainda que essa chamada próxima não é bastante: que se requer também uma sólida preparação interior" (Le paysan de la Garonne, París 1966).
2.– Virtude. Efetivamente, uma sólida preparação interior. Por muitas razões evidentes "o que governa deve possuir as virtudes morais em grau perfeito" (Santo Tomás, Prefácio à Política I, 10, 7). Quem se dedica à vida política necessita ter de modo eminente virtudes decisivas que possibilitem o exercício honrado de seu ministério: abnegação, caridade, sabedoria, veracidade, fortaleza, justiça, prudência, etcetera. Necessita delas, pois, se não as tem, seu trabalho político causará necessariamente enormes danos. Necessita, pois, o político cristão de todas essas e de outras virtudes porque na função governativa 1.- representa em sua medida o Senhor, de quem vem toda autoridade; 2.- porque de seus atos se seguem com frequência consequências muito importantes para todo o povo; e 3.-porque no desempenho de sua alta missão há de resistir a tentações especialmente graves de soberba, falsidade oportunista, enriquecimento injusto, cumplicidades e silêncios criminosos.

Nas considerações que se seguem falo às vezes com certa dureza dos políticos cristãos; mas, no fundo, hão de ser vistos com muita compaixão. Servem muitas vezes um ofício que lhes supera, e para o qual não foram nem sequer rudimentarmente preparados – também há culpas de omissão em quem não lhes deu doutrina católica sobre seu altíssimo ministério. E faltam-lhes as virtudes pessoais necessárias. É possível que um sapateiro, ainda que não seja muito virtuoso, desempenhe seu ofício dignamente. Mas um político cristão, se não é muito virtuoso, certamente cumpre seu ofício de um modo indigno e gravemente prejudicial para o mundo, e, sobretudo, para a Igreja. Os maiores males que vêm sobre esta procedem muitas vezes dos maus políticos cristãos.

Algo semelhante ocorre, por exemplo, a um neurocirurgião: ou é muito bom ou é muito ruim. Porém encontramos uma analogia ainda mais eloquente na vocação do sacerdote. Seu ministério é tão alto e sagrado, é uma colaboração tão importante na obra do Salvador do Mundo, que se não a cumpre muito bem, provavelmente a cumprirá muito mal, ao menos em alguns aspectos.

3.–Amor à Cruz, isto é, espírito martirial, que faz possível viver livres do diabo e do mundo. Não me estenderei neste ponto, porque já tratei dele em várias ocasiões, inclusive recentemente. A história humana é uma incessante e tremenda batalha entre as forças de Cristo e as do Maligno, entre a luz e as trevas. Nesta situação o cristão, e o político de um modo especial, há de escolher entre militar sob a bandeira da Luz Divina ou militar sob a bandeira da mentira diabólica, imperante no mundo, associando-se neste caso "com os dominadores deste mundo tenebroso, com os espíritos maus" (Carta de São Paulo aos Efésios 6, 12). A opção é obrigatória, inevitável. E não cabem opções intermediárias. "Ninguém pode servir a dois senhores" (Evangelho de São Mateus 6, 24), e menos ainda se estão em guerra.

O cristão político que não tem força espiritual para tomar a cruz e seguir a Cristo, o que é incapaz de dar ao mundo o testemunho da verdade, o que está decidido a guardar sua própria vida, tem obrigação gravíssima de abandonar sua profissão, pois se a segue, se perderá certamente na vida presente e possivelmente na vida eterna. Por muitas que sejam as argúcias mentais que elabore para justificar-se – não lhe faltarão ajudas –, sua vida política é falsa e diabólica, pois se faz cúmplice de quem pretende matar a Cristo na sociedade e destruir sua Igreja. Não é uma casualidade insignificante que o patrono dos políticos católicos, Santo Tomás Moro, seja mártir.

Vende sua alma ao diabo, expressão popular muito profunda, o político cristão que não põe em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça, mas sua própria prosperidade e a de sua família. Assim não se pode servir a Cristo Rei. O que quer guardar sua vida, certamente a perderá. O que não se nega a si mesmo, o que não toma sua cruz cada dia, também no exercício da profissão política, não pode seguir a Cristo Evangelho de São Lucas 9, 23-24). Trai a Cristo e à Igreja. Vende sua alma ao diabo, e este, cumprindo o contrato, lhe dá domínio e poder sobre seu mundo. Não são falsas as palavras do diabo, pai da mentira, quando diz ao cristão o que disse a Cristo: "dar-te-ei todo o poder e a glória destes reinos, porque me foram dados, e dou-os a quem quero. Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu" (Evangelho de São Lucas 4, 6-7).

4.–Possibilidade histórica. Para que o cristão possa servir no nobilíssimo ofício de político, necessita, pois, de vocação e virtude; mas necessita também de possibilidade histórica concreta. Nos primeiros séculos da Igreja, por exemplo, era quase impossível que os cristãos, estando proscritos pela lei romana, pudessem servir na política ao bem comum. Deram-se nisto algumas exceções, mas em campos políticos reduzidos e em zonas periféricas do Império. E atualmente estamos em condições bastante semelhantes.

Quando Platão explica por que os sábios se abstêm dos negócios públicos, recorre à seguinte comparação:
"Um sábio observa como na rua a multidão se empapa sob uma tremenda chuva. Por um momento pensa em sair de casa para persuadir as pessoas a se abrigarem. Mas renuncia ao intento, considerando que se a multidão aguenta ficar sob a chuva, isso indica sua estupidez, e que essa insensatez faz prever que recusarão o conselho razoável. Decide, pois, não ir molhar-se com eles inutilmente, e fica em casa (República VI, 496).
Santo Tomás Moro (1477-1535), anos antes de chegar a ser Chanceler do Reino, descreve em sua obra Utopia (1516) o fim que corresponde a quem pretende afirmar politicamente a verdade e o bem onde predomina em grande medida a mentira e o mal. No livro I da obra, põe prudentemente seu pensamento em lábios do navegante Rafael, o qual, ainda que conheça a sabedoria dos utopianos, se nega a aceitar cargos políticos, alegando:
– "se dissesse isto e outras coisas semelhantes, aos encarniçados partidários de métodos totalmente opostos, não seria como falar aos surdos?". Moro o reconhece em parte, mas argúi:
– "Ainda que não possais desarraigar as opiniões malvadas nem corrigir os defeitos habituais, não por isso deveis desentender-vos do Estado e abandonar a nave na tempestade porque não podeis dominar os ventos… Faz falta que sigais um caminho oblíquo, e que procureis consertar as coisas com vossas forças, e, se não conseguis realizar todo o bem, esforçai-vos pelo menos em minguar o mal». Estas palavras – a aspiração habitual de certas políticas: o mal menor – não convencem Rafael:
– "Desta maneira, só pode acontecer que, ao dedicar-me a cuidar da loucura dos demais, torne-me louco como eles; quando desejo dizer verdades, se me faz necessário dizê-las. Não sei se o dizer mentiras seja próprio de um filósofo, mas certamente não o é para mim. Se devemos deixar em silêncio, como se se tratasse verdadeiramente de coisas estranhas e absurdas, tudo o que os pervertidos costumes dos homens fazem considerar inoportuno, será preciso que ocultemos dos olhos dos cristãos a maior parte do que Cristo ensinou e proibiu, todas aquelas coisas que Ele sussurrou aos ouvidos dos seus, mandando-lhes que as proclamassem de cima dos telhados. A maior parte delas difere muito da maneira de viver atual.
"Em verdade, parece que os pregadores, gente sutil, seguiram vossos conselhos: vendo que os homens se dobravam dificilmente às normas estabelecidas por Cristo, acomodaram-nas aos costumes, como se estas fossem uma régua de chumbo, para poder conciliá-las de alguma maneira. Mas não vejo que com isso se tenha adiantado nada, a não ser que se possa obrar o mal com maior tranquilidade.
"Tampouco seria eu de nenhuma utilidade nos conselhos dos príncipes, já que se opinasse de maneira diferente da maioria seria como se não opinasse; e se opinasse de igual maneira, seria auxiliar de sua loucura. Não distingo o fim de vosso caminho oblíquo, segundo o qual dizeis que há que procurar, por falta de poder realizar o bem, evitar o mal por todos os meios possíveis. Não é aquele [o Conselho do Rei] lugar para dissimulações, nem é possível fechar os olhos. Faz-se necessário aprovar ali as piores decisões e subscrever os decretos mais pestilentos. E passa por espião, por traidor quase, quem não faz elogio de medidas malignamente aconselhadas. Assim, pois, não há ocasião de realizar nenhuma ação benéfica, já que é mais provável que o melhor dos homens seja corrompido por seus colegas [políticos], que não que lhes corrija, já que o perverso trato com estes ou bem lhe deprava ou lhe obriga a disfarçar sua integridade e inocência com a maldade e a necedade alheias. Tão distante está, pois, de obter o resultado proposto com vosso caminho oblíquo» (56-61).
Tomás Moro escrevia essas reflexões em 1516, descrevendo antecipadamente sua própria morte. Recordemos algumas datas. Foi nomeado Lorde Chanceler da Inglaterra em 1529. Demitiu-se de seu cargo e se retirou para o campo em 1532, querendo marginar-se das decisões perversas do rei Henrique VIII, nas quais não queria comprometer sua consciência. E finalmente, em 1535, sua santa cabeça, por ser incapaz de aprovar os crimes do rei, foi violentamente separada de seu corpo na Torre de Londres. São João Fisher (1469-1535), Bispo de Rochester e Cardeal, precedeu-lhe uns dias antes no mesmo caminho do martírio. Os demais Bispos ingleses, antes de serem mártires e deixar seu povo sem Pastores sagrados, preferiram tomar o caminho do cisma e da heresia, conservando assim, de passo, sua cabeça e seus bens.

5.– Conhecimentos. Para ser um bom político não bastam as virtudes morais, mas requerem-se uma série de conhecimentos históricos, religiosos e jurídicos, sociais e econômicos, assim como outras habilidades práticas, que não podem dar-se por supostos. Ainda que na vida política muitas vezes se estime outra coisa, não vale aquela norma de que no combate "a falta de armas se suprirá com valor".

Eu disse anteriormente que o político necessita ter as virtudes em alto grau; mas não se esqueçam aqui que a posse de um hábito virtuoso não implica necessariamente a facilidade para exercitá-lo, já que podem dar-se fatores extrínsecos que impedem esse exercício ou podem faltar aqueles que são necessários (Summa Theologiæ I-II,65, 3). Por muito virtuoso que seja um cristão, mal poderá servir a ação política se não sabe expressar-se bem, se lhe falha a saúde, ou, sobretudo, se carece da formação suficiente. Necessita possuir um nível suficiente de conhecimentos e de qualidades pessoais.

6.–Conhecimento da doutrina política da Igreja e fidelidade a ela. Os políticos cristãos, por outra parte, para servir realmente ao bem comum da sociedade, impregnando-a quanto seja possível do Evangelho, necessitam conhecer e seguir a doutrina católica acerca da vida política. Se em seu pensamento e em sua atividade política se guiam pelos critérios do século, eles serão sem dúvida alguma os mais eficazes aliados do diabo, Príncipe deste mundo.

Dentre os seis pontos acima quero destacar o terceiro, o amor à Cruz, ao Crucificado salvador: é o único que pode fazer os políticos livres do diabo, do mundo e de si mesmos, e servidores fiéis de Cristo e dos homens. Atualmente, nos níveis mais altos da política, a evitação semipelagiana do martírio chegou a frear quase totalmente a ação própria dos políticos católicos. Concretamente, nas nações do Ocidente de antiga filiação cristã nunca a Igreja teve menos influência que hoje na configuração política de leis e governos.

José María Iraburu, sacerdote.
Pamplona, Espanha.
As ênfases no texto em negrito ou itálico são do próprio autor.
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Nota dos editores:
* Sobre a vocação política como vocação específica, ver o no. 44 da exortação apostólica Ecclesia in America, de 1999: "A América necessita de cristãos leigos em grau de assumir cargos de dirigentes na sociedade. É urgente formar homens e mulheres capazes de influir, segundo a própria vocação, na vida pública, orientando-a para o bem comum. No exercício da política, considerada no seu sentido mais nobre e autêntico de administração do bem comum, aqueles podem encontrar o caminho da própria santificação".

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