segunda-feira, 30 de maio de 2011

03. Princípios Doutrinais, I

Os leigos que se comprometem especialmente com a vida política devem conhecer bem a doutrina da Igreja sobre a política e devem vivê-la com fidelidade! Se em tema tão grave e complexo se guiarem pelos critérios do mundo, eles virão a ser, sem dúvida, os principais e mais eficazes aliados do diabo, o Príncipe deste mundo. Terão vendido sua alma para o diabo. 

A Igreja católica tem uma excelente doutrina política, que não é pouco ignorada em nosso tempo. É verdade que nos últimos decênios ela tem sido escassamente pregada, e como “a fé nasce da pregação” (Carta de São Paulo aos Romanos 10, 17), isso explica por que é ignorada inclusive por bons católicos.

Também é verdade que depois do Vaticano II foram produzidos só alguns grandes documentos da Igreja sobre a doutrina política. Se consultamos, por exemplo, os Documentos Políticos do Magistério eclesial, publicados pela Biblioteca de Autores Cristãos (a edição é de 1958, tomo 174 da colecção BAC maior), comprovamos que essa antologia, num período de uns 100 anos (1846-1955), quer dizer, entre Pio IX e Pio XII, inclui 59 documentos, dos quais boa parte são encíclicas. Por outro lado, durante a segunda metade do século XX — e até hoje — a Igreja quase não publicou documentos políticos. 

Em nossa época, o Magistério apostólico tem publicado numerosos documentos sociais, chamando os cristãos também ao compromisso político. Mas tirante algum discurso ocasional — na Organização das Nações Unidas, por exemplo —, a doutrina política da Igreja tem sido proposta muito escassamente. Algumas verdades têm sido recordadas, por exemplo, na encíclica Centesimus annus (de 1991, ver os números 40 até 44). E também de passagem João Paulo II, na encíclica Evangelium vitæ (de 1995, ver os números 20 até 24, e 69 até 77), reafirma vários princípios doutrinais de política, hoje muito esquecidos, e inclusive negados, pelos católicos que vivem em regimes democráticos. O documento da Congregação para a Doutrina da Fé, Nota doutrinal sobre algumas questões relativas ao compromisso e à conduta dos católicos na vida política (de 24 de novembro de 2002), é uma Nota breve, que se limita a “recordar alguns princípios próprios da consciência cristã, que inspiram o compromisso social e político dos católicos nas sociedades democráticas”. Também hão de ser levadas em conta as precisões que Bento XVI faz em sua encíclica Deus caritas est (2005) sobre as relações entre política e fé, entre justiça e caridade (números  28 até 29). *

Frequentemente, os Pastores sagrados enfrentam hoje questões morais concretas da vida política. Educação, divórcio, justiça social, meios de comunicação, moralidade de certas leis, são objeto frequente de seu ministério docente. Há outras questões concretas em relação às quais a iluminação da Igreja resulta ineficiente, e, às vezes, até mesmo contraditória entre uns e outros Bispos: objeção de consciência, participação dos fieis em grandes partidos liberais ou apoio a partidos carentes de inspiração cristã, obediência ou resistência a leis injustas, dar ou não a comunhão eucarística a políticos católicos infiéis, etcetera. Com relativa frequência, falta ao povo cristão uma resposta clara e unânime a questões às vezes muito graves. Não há critérios claros e unânimes sobre como o povo cristão deve viver politicamente em Babilônia. Querem manter a todo custo uma atitude positiva e otimista ante o mundo moderno, do qual não negam, certamente, “alguns erros”. Mas, definitivamente, não querem estar numa oposição radical, senão com o governo ou como alternativa de governo.

Pelo contrário, o juízo pastoral explícito do próprio sistema político vigente costuma ser escasso. Isto é assim principalmente quando se trata de regimes democráticos liberais, pois sobre os governos totalitários a Igreja costuma fazer discernimentos mais fortes e claros. Quiçá os Pastores, por não haver coincidências suficientes no juízo sobre as democracias modernas, enquanto tais, preferem manter-se em silêncio. Em todo caso, parece evidente que tanto entre os Pastores como no povo católico falta hoje nas questões políticas a unidade suficiente de pensamento, que tornaria possível uma ação unitária e eficaz. 

Por isso, muitos pensamos que a doutrina política da Igreja, elaborada entre meados do século XIX e meados do XX, necessita urgentemente 1) de confirmação e 2) de desenvolvimento. Isso exigiria grandes Encíclicas, mais de uma, e provavelmente a celebração de um Concílio. Recordarei aqui, por enquanto, alguns princípios fundamentais da doutrina católica sobre a política, assinalando também os erros que a impugnam. São princípios que deveriam estar incluídos nos Catecismos para crianças e adolescentes. Se estes não os conhecem, quando estiverem maiores pensarão como seus pais, que em grande parte pensam sobre esses temas segundo o mundo, e não segundo Deus (Evangelho de São Marcos 8, 33).

1º. A autoridade política dos governantes vem de Deus, esteja ela constituída por herança dinástica, por votação majoritária de uma democracia orgânica ou partidocrática, por acordo entre clãs ou seguindo outros modos lícitos. Não há autoridade que não provenha de Deus, pois quantas existem por Deus foram estabelecidas. Consequentemente, a obediência às autoridades políticas legítimas deve ser prestada “em consciência” (Carta de São Paulo aos Romanos 13, 1-7; 1 Carta de São Pedro 2, 13-17). 

2º. As leis civis têm seu fundamento na lei natural, numa ordem moral objetiva, instaurada por Deus, Criador e Senhor de toda a criação e, também, da sociedade humana. Se não for assim, torna-se inevitável o positivismo jurídico, próprio do liberalismo, que leva necessariamente ao relativismo moral. Essa árvore má só produz frutos podres: tantas leis atuais perversas, caminhos de perdição, a interna divisão dos povos em pedaços partidos contrapostos, o bem merecido menosprezo dos governantes e de suas leis. Muitas pesquisas nos asseguram que os políticos são hoje os profissionais menos apreciados de todos os grêmios da sociedade.

O liberalismo nega totalmente esses princípios. Todos os derivados políticos do liberalismo são seus filhos naturais — democracia liberal, totalitarismos socialistas ou comunistas, nazistas ou fascistas, ditaduras de um partido único ou de líderes populares —, todos, como bem advertiu Pio XI (na encíclica Divini Redemptoris, de 1937). E todos, o liberalismo e seus filhos, ainda que de diversos modos, negam frontalmente que a autoridade política venha de Deus e que as leis positivas só são válidas se estão fundamentadas na ordem moral natural.

Em minha opinião, o termo liberalismo, consagrado pelo Magistério apostólico, deve ser mantido — e se mantém —, porque é mais exato que outros equivalentes. O naturalismo é uma palavra sem sentido nos sistemas modernos que negam uma ordem natural. Falar de política racionalista é inadequado, quando aqueles que a propugnam negam que a razão tem o poder de chegar a conhecimentos objetivos da verdade. E o laicismo é um termo muito equívoco, pois laicos são precisamente os católicos.

O liberalismo fundamenta a autoridade dos governantes exclusivamente no homem, em sua liberdade — a soberania popular, a maioria dos votos, o partido único ou o grande chefe popular ou dinástico. As leis, igualmente, se apoiam somente no homem — “sereis como deuses, conhecedores [determinadores] do bem e do mal” (Livro do Géneses 3) —, numa maioria de votos, num partido carismático, no quer que seja, mas sempre num positivismo jurídico absoluto, num relativismo mutável que rechaça a soberania de Deus e às vezes sua própria existência, e que não mantém nenhum tipo de sujeição aos presumíveis valores morais de uma ordem natural objetiva.

O liberalismo é, pois, um ateísmo prático (Leão XIII, na encíclica Libertas praestantissimum, de 1888). Já em 1864 o papa Pio IX descrevia esse ateísmo político e moral, segundo o qual a “razão humana, sem nunca levar Deus em conta, é o único arbítrio do verdadeiro e o falso, do e do mal; é sua própria lei; e bastam suas forças naturais para procurar o bem dos homens e dos povos” (Syllabus errorum, erro 3). 

Ao contrário, numerosos documentos da Igreja, especialmente entre 1850 e 1950, rechaçam essa doutrina e, com toda exatidão, comprovada historicamente em nosso tempo, anunciam as nefastas consequências que trará consigo sua aplicação prática. Nesse mesmo sentido, o Concílio Vaticano II afirma que é completamente falsa “uma autonomia do temporal que signifique que a realidade criada é independente de Deus e que os homens podem usá-la sem referência a Deus” (constituição pastoral Gaudium et spes, número 36). Com efeito, há que se “rechaçar a funesta doutrina que pretende construir a sociedade prescindindo absolutamente da religião” (constituição dogmática Lumen gentium, número 36). 

João Paulo II, na encíclica Evangelium vitæ, denuncia que “na cultura democrática de nosso tempo difundiu-se amplamente a opinião de que o ordenamento jurídico de uma sociedade deveria se limitar a perceber e assumir as convicções da maioria e, portanto, se basear apenas no que a maioria mesma reconhece e vive como normal”, não importando o que seja. 

Segundo essa noção, “a responsabilidade da pessoa é delegada na lei civil, abdicando da própria consciência moral, ao menos no âmbito da ação pública” (encíclica Evangelium vitæ, número 69). A raiz desse processo está no relativismo ético, que alguns consideram “como uma condição da democracia, já que só ele garante a tolerância, o respeito recíproco entre as pessoas e a adesão às decisões da maioria, enquanto as normas morais, consideradas objetivas e vinculantes, levariam ao autoritarismo e à intolerância” (número 70). “Desse modo [pela via do relativismo liberal], a democracia, apesar de suas regras, segue um caminho de totalitarismo fundamental” (número 20). E a ele já chegou, pois “nos próprios regimes participativos a regulação dos interesses ocorre com frequência em benefício dos mais fortes, que têm maior capacidade para manobrar não só as alavancas do poder, mas inclusive a formação do consenso. Numa situação como essa, a democracia se converte facilmente numa palavra vazia” (número 70).

“Para o futuro da sociedade e o desenvolvimento de uma sã democracia, urge, pois, descobrir novamente a existência de valores humanos e morais essenciais e originários, que derivam da verdade mesma do ser humano e expressam e tutelam a dignidade da pessoa. São valores, portanto, que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado nunca podem criar, modificar ou destruir, mas devem apenas reconhecer, respeitar e promover” (número 71; ver os números 2, 3 e 4 da Nota Nota doutrinal sobre algumas questões relativas ao compromisso e à conduta dos católicos na vida política de 2002).

A batalha de Bento XVI contra o relativismo começou no próprio início de seu pontificado. E [ele] a mantém até hoje: “todos os homens estão chamados a reconhecer as exigências da natureza humana inscritas na lei natural e a se inspirar nela para formular leis positivas que rejam a vida em sociedade. Se a lei natural é negada, o caminho ao relativismo ético e ao totalitarismo é aberto” (Audiência geral do 16 de junho de 2010). 

Os católicos liberais são círculos quadrados. Muitos políticos cristãos do Ocidente aceitaram o ateísmo prático do liberalismo na vida política, primeiro como hipótese prudencial de governo, e já há algum tempo como tese. E apesar de professarem “a funesta doutrina que pretende construir a sociedade prescindindo absolutamente da religião” (constituição dogmática Lumen gentium, número 36), não obstante, atrevem-se inclusive a fundamentar sua posição anticristã na doutrina do Vaticano II. Mas o concílio ensina justamente o contrário: ensina “o dever moral dos homens e das sociedades para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo” (Declaração Dignitatis humanæ, número 1). E manda, principalmente os fieis católicos, que “em qualquer assunto temporal devem se guiar pela consciência cristã, dado que nenhuma atividade humana, nem sequer o domínio temporal, pode se subtrair ao império de Deus” (constituição dogmática Lumen gentium, número 36). 

Os católicos que militam num partido liberal, ainda que este tenha certa inspiração cristã, jamais pronunciam em público a palavra Deus, que vem a ser o Inominável, algo próximo ao Inexistente. Toda alusão a Deus deve ser evitada sistematicamente na vida política moderna, pois é contrária à unidade e à paz entre os cidadãos, e é causa provável de separação e enfrentamentos. O bem comum político, portanto, há de ser procurado “como se Deus não existisse”. E a fé pessoal que possam ter os políticos cristãos deve permanecer silenciada e relegada absolutamente à sua vida privada.

A Constituição Espanhola de 1978 é agnóstica e, portanto, liberal. E já em seu próprio início estabelece que “a soberania nacional reside no povo espanhol, do qual emanam os poderes do Estado” (Constitución española, 1978, art. 1, 2). Essa soberania popular pode ser entendida de muitos modos, mas em seu significado mais óbvio pode tornar lícito e constitucional o aborto, o divórcio rápido sem causa, o “matrimônio” homossexual, a eutanásia, a poligamia e tudo aquilo que os poderes do Estado, fundamentados na soberania do povo espanhol, considerem, em cada momento, conveniente para o bem comum, pois prescinde sistematicamente de toda referência a Deus, à lei natural e também à tradição histórica nacional.

O cardeal Marcelo González Martín, [então Arcebispo de Toledo], antes do referendo sobre a Constituição, advertia que o texto, em temas de suma importância — matrimônio, família, aborto, divórcio, educação, meios de comunicação, etc. — permanecia aberto, ou insuficientemente fechado, a enormes crimes legais, destruidores da nação (declaração do 28 de novembro de 1978). E suas previsões se cumpriram. E seguirão se cumprindo. Vejamos:

Consideramos muito grave propor uma Constituição agnóstica a uma nação de batizados, de cuja imensa maioria não consta que tenha renunciado à sua fé. O nome de Deus, é certo, pode ser invocado em vão. Mas sua exclusão pode ser também um esquecimento muito significativo”. Um silêncio que explica “a falta de referência aos princípios supremos da lei natural ou divina. A orientação moral das leis e atos de governo continua a mercê dos poderes públicos de cada momento”. E adverte finalmente: “Quando por todas as partes se percebem as funestas consequências a que estão levando os homens e os povos o esquecimento de Deus e o desprezo da lei natural, é triste que nossos cidadãos católicos se vejam obrigados a ter uma opção que, em qualquer hipótese, pode deixar intranquila sua consciência”, se a aceitam, por ir contra a consciência; e se a rechaçam, por se verem como causas de divisão. Mas “não são eles que introduzem a divisão, mas o texto apresentando para referendum”.

Aqueles que, pela graça de Deus, colaboramos durante algum tempo, ainda que breve, com Dom Marcelo sabemos bem que a ele não importava permanecer sozinho em algumas questões. Nesse caso concreto, tinha clareza de que o Magistério da Igreja estava com ele. Poucos anos antes, em 1961, o papa João XXIII havia escrito na encíclica Mater et magistra:

A insensatez mais característica de nossa época consiste no intento de estabelecer uma ordem temporal sólida e proveitosa sem apoiá-la em seu fundamento indispensável, ou, o que é o mesmo, prescindindo de Deus; e querer exaltar a grandeza do homem cegando a fonte da qual nasce e se alimenta, isto é, obstaculizando e, se fosse possível, aniquilando a tendência inata da alma a procurar Deus. Todavia, os acontecimentos de nossa época, que destruíram as esperanças de muitos e arrancaram lágrimas de não poucos, confirmam a verdade da Escritura: ‘se o Senhor não constrói a casa, em vão labutam os seus construtores’ (Salmo 127, 1)”.

José María Iraburu, sacerdote.
Pamplona, Espanha.
As ênfases no texto em negrito ou itálico são do próprio autor.

Leia na próxima Sexta feira "princípios doutrinais para o católico na política", segunda parte.


* Nota dos editores: 
Neste elenco deve-se colocar também: De Paulo VI,  a carta apostólica Octagesima adveniens (de 1971, números 23 até 41, e 45 até 51), e a enciclica Populorum progressio (de 1967, números 7 até 10); de João Paulo II,  a exortação apostólica Familiaris consortio (de 1981, números 44 até 46, e 48), a enciclica Sollicitudo rei socialis (de 1987, números 20 até 22),   a exortação apostólica Christifideles laici (de 1988, números 36 até 42); e a carta apostólica sob forma de Motu proprio E sancti Thomae Mori (de 2000), pela qual se proclama a Santo Tomás Moro como patrono dos governantes e dos políticos; de Bento XVI, a encíclica Spe salvi (de 2007, números 13 até 30), e a enciclica Caritas in veritate (de 2009). Evidentemente deve-se considerar o Compêndio de Doutrina Social da Igreja, de 2004.

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