Os pagãos têm muito mais verdade que os cristãos apóstatas. Isto poderia ser expressado com a ajuda de uma parábola.
Num cão muito esperto, por meio de uma operação cerebral maravilhosa, foi infundido o espírito humano, e ele chega assim à inteligência da razão e à liberdade da vontade. Um dia, contudo, abrumado pelas responsabilidades próprias de sua nova condição inteligente e livre, exige que lhe retirem o espírito humano. Mas então não recupera suas habilidades animais: já não distingue pelo olfato se um alimento é bom ou não, já não sabe encontrar o caminho de regresso à casa de seu amo… Torna-se um animal excepcionalmente bobo, porque tendo sido chamado a viver segundo a razão, renunciou a esta, e agora não lhe funciona nem a razão, nem o instinto animal.
Num cão muito esperto, por meio de uma operação cerebral maravilhosa, foi infundido o espírito humano, e ele chega assim à inteligência da razão e à liberdade da vontade. Um dia, contudo, abrumado pelas responsabilidades próprias de sua nova condição inteligente e livre, exige que lhe retirem o espírito humano. Mas então não recupera suas habilidades animais: já não distingue pelo olfato se um alimento é bom ou não, já não sabe encontrar o caminho de regresso à casa de seu amo… Torna-se um animal excepcionalmente bobo, porque tendo sido chamado a viver segundo a razão, renunciou a esta, e agora não lhe funciona nem a razão, nem o instinto animal.
De modo semelhante, a razão do pagão se ilumina ao máximo quando pela fé alcança a vida cristã, chegando a ser "nova criatura" (2 Carta de São Paulo aos Corintios 5, 17; Carta de São Paulo aos Efésios 2, 15). Mas se se afunda voluntariamente na apostasia, vem a ser um homem excepcionalmente imbecil, que, tendo renunciado à luz da fé, quase não tem uso da razão. Isso explica, por exemplo, a morte da filosofia no Ocidente.
Os Estados modernos, antes cristãos e agora apóstatas, ficaram idiotizados, e geram continuamente leis gravemente injustas, piores que as dos Estados pagãos. Não se regem pela fé, mas tampouco pela razão, pois esta se lhes atrofiou. "Alardeando ser sábios, tornaram-se tolos" (Carta de São Paulo aos Romanos 1, 22). Quando consideramos o pensamento dos antigos filósofos pagãos – Platão, Aristóteles, Cícero, Marco Aurélio – vemos que, ainda que não livres de erros, tinham uso da razão, pensavam e ensinavam doutrinas filosóficas e morais incomparavelmente mais verdadeiras que as que hoje regem as nações apóstatas. Corruptio optimi pessima. Estas chegaram a cúmulos de imbecilidade e ignomínia nunca alcançados pelos povos pagãos. O Direito Romano era mais justo, mais conforme ao sentido comum e à natureza humana, que o que hoje rege as nações modernas. Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), por exemplo, chega a conhecer e a ensinar que há uma lei eterna, que rege o mundo pela lei natural, na qual há de fundamentar-se toda lei positiva promulgada pelos homens:
"A opinião dos homens mais sábios foi de que a Lei não é um produto do pensamento humano, nem uma promulgação dos povos, mas algo eterno, que rege o universo inteiro mediante sua sabedoria, que manda e proíbe" (De legibus 2.4.8). Algumas leis ditadas pelo povo (plebs), se se opõem a essa ordem suprema permanente, "não merecem mais ser chamadas leis do que as regras acordadas por uma banda de ladrões em sua assembleia" (2.5.13). "O cúmulo da estupidez é crer que tudo o que se acha nos costumes ou nas leis das nações é justo" (1.14.42).
Apagaram-se essas luzes no mundo da apostasia ocidental moderna. Os políticos já não têm uso da razão, e "resistem à verdade, como homens de entendimento corrompido" (2 Carta a Timóteo 1, 7). Geram cada vez mais leis, e cada vez piores. E os cristãos liberais dedicados à política, fazendo-se seus cúmplices, silenciam sistematicamente a Deus e à ordem natural – se é que os conhecem –, e entram assim com eles na densa escuridão do poder das trevas. Que devem fazer então os cristãos diante das leis perpetradas pelo grande Leviatã dos Estados modernos, sejam totalitários, sejam liberais?
[No artigo passado, comecei explicar alguns dos princípios da doutrina católica sobre a política, tratei (1) da origem Divina da autoridade, e (2) do fundamento das leis civis numa ordem moral objetiva, instaurada por Deus, agora vamos abordar um terceiro princípio doutrinal:]
3º. As leis injustas devem ser resistidas. O homem se aperfeiçoa obedecendo às leis lícitas das autoridades civis legítimas, porque com essa obediência cívica "obedece a Deus" (1 Carta de Pedro 2, 13-17; Carta de São Paulo aos Romanos 13, 1-7) e colabora com o bem comum dos cidadãos. Pelo contrário, quando o cidadão obedece a leis criminosas se embrutece e degrada, se faz cúmplice de graves maldades, e para evitar o martírio, a cruz da verdade, vende sua alma ao diabo, e dá culto idolátrico aos homens malvados que lhe estão sujeitos. Desse modo, "adora e serve à criatura em vez do Criador, que é bendito pelos séculos. Amém" (Carta de São Paulo aos Romanos 1, 25).
3º. As leis injustas devem ser resistidas. O homem se aperfeiçoa obedecendo às leis lícitas das autoridades civis legítimas, porque com essa obediência cívica "obedece a Deus" (1 Carta de Pedro 2, 13-17; Carta de São Paulo aos Romanos 13, 1-7) e colabora com o bem comum dos cidadãos. Pelo contrário, quando o cidadão obedece a leis criminosas se embrutece e degrada, se faz cúmplice de graves maldades, e para evitar o martírio, a cruz da verdade, vende sua alma ao diabo, e dá culto idolátrico aos homens malvados que lhe estão sujeitos. Desse modo, "adora e serve à criatura em vez do Criador, que é bendito pelos séculos. Amém" (Carta de São Paulo aos Romanos 1, 25).
A Igreja oferece em sua história um grande exemplo tanto de obediência cívica, enquanto ela é devida, como de resistência passiva até a morte, no caso dos mártires, quando a obediência se faz iniquidade. Com efeito, são inumeráveis os exemplos dos mártires cristãos, que antes de ser infiéis a seu Senhor e a sua consciência, resistiram e resistem heroicamente às leis injustas, enfrentando o cárcere, o desterro, o despojamento de seus bens ou a morte. E não esqueçamos que dos 70 milhões de cristãos que foram mártires na história da Igreja, 45 milhões e meio o foram no século XX, quer dizer, 65% (Antonio Socci, I nuovi perseguitati. Indagine sulla intolleranza anticristiana nel nuovo secolo do martirio, Piemme 2002, 159 pgs.).
A Igreja católica sempre mandou que não sejam obedecidas as leis injustas. O Catecismo da Igreja Católica ensina que "o cidadão tem obrigação em consciência de não seguir as prescrições das autoridades civis quando esses preceitos são contrários às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho" (No. 2242). Esses ensinamentos se multiplicaram, logicamente, desde a Revolução Francesa, desde a apostasia das nações de antiga filiação cristã, ao iniciarem-se os Estados liberais e posteriormente os Estados totalitários, uns e outros anticristãos, sem Deus e sem ordem natural.
Contra os modernos Estados liberais recordo a doutrina de Leão XIII:
"Todas as coisas nas quais a lei natural ou a vontade de Deus resultam violadas não podem ser mandadas nem executadas… pois 'é necessário obedecer a Deus antes que aos homens' (Evangelho de São Mateus 22, 21). E os que assim obram não podem ser acusados de quebrar a obediência devida, porque se a vontade dos governantes contradiz a vontade e as leis de Deus, os governantes extrapolam o campo de seu poder e pervertem a justiça. Nem nesse caso pode valer sua autoridade, porque esta autoridade, sem a justiça, é nula" (encíclica Nôtre consolation, No. 17, de 1892; ver também encíclica Diuturnum illud, No. 11, de 1881; encíclica Libertas praestantissimum, Nos. 10 e 21, de 1888; encíclica Au milieu des sollicitudes, Nos. 31 e 32, de 1892).
Contra os modernos Estados totalitários, recordo o ensinamento de Pio XI, sobretudo as grandes encíclicas Mit brennender Sorge (de 1937), contra o nazismo, e a encíclica Divini Redemptoris (de 1937), sobre o comunismo ateu. O ensinamento pontifício contra o nazismo tem hoje especial vigência no âmbito daquelas democracias liberais que invadem a sociedade, produzindo uma lei criminosa atrás de outra:
Há de considerar-se sempre o "direito natural, impresso pelo próprio Criador nas tábuas do coração humano, e que a sã razão humana, não obscurecida por pecados e paixões, é capaz de descobrir. À luz das normas deste direito natural pode ser avaliado todo direito positivo, e por conseguinte a legitimidade do mandato e a obrigação de cumpi-lo. As leis humanas que estão em oposição insolúvel com o direito natural padecem de um vício original que não se pode subsanar" com nada (encíclicas Mit brennender Sorge, No. 35).
Concretamente, as leis acerca da educação que estejam "em contradição com o direito natural são íntima e essencialmente imorais" (No. 37). "É dever de todo crente separar claramente sua responsabilidade da parte contrária, e sua consciência de toda pecaminosa colaboração em tão nefasta destruição" (No. 48).
É preciso, pois, que os cidadãos resistam às leis injustas, "se é que não se quer que sobrevenha uma ingente catástrofe ou uma decadência indescritível" (No. 22), consequências do nazismo, e hoje das democracias liberais. "Fomentar o abandono das diretrizes eternas de uma doutrina moral objetiva para a formação das consciências e para o enobrecimento da vida em todos seus planos e ordenamentos, é um atentado criminoso contra o porvir do povo, cujos tristes frutos serão muito amargos para as gerações futuras" (No. 34).
Neste marco sócio-político tão degradante, o Papa expressa sua gratidão e admiração por aqueles cristãos que, por ser fiéis a sua consciência, "fizeram-se dignos de sofrer, pela causa de Deus, sacrifícios e dores" (No. 17). "Com pressões ocultas e manifestas, com intimidações, com perspectivas de vantagens econômicas, profissionais, cívicas ou de outra espécie, a adesão dos católicos a sua fé – e singularmente a de algumas classes de funcionários católicos – se acha submetida a uma violência tão ilegal como inumana. Nós, com paterna emoção, sentimos e sofremos profundamente com os que pagaram tão caro preço sua adesão a Cristo e à Igreja; mas chegamos já a tal ponto, em que está em jogo o último fim e o mais alto, a salvação ou a condenação" (No. 24).
Santo Tomás de Aquino ensina que as leis criminosas, ao ir contra Deus e a ordem natural, são pseudo-leis, não são propriamente leis: "são mais violências que leis, porque, como diz Santo Agostinho, 'a lei, se não é justa, não parece que seja lei'" (Summa Theologiæ I-II, 96). Obedecer a essas pseudo-leis poderá salvar nosso corpo, nossos interesses temporais, mas perderá nossa alma. Devem ser em consciência desobedecidas, resistidas, sem dar-lhes cumprimento, pois de outro modo nos faríamos cúmplices de maldades criminosas. Vejamo-lo em algumas situações concretas.
As obrigações legais não eximem os cristãos de suas obrigações morais de consciência, quando são obrigações que se contrapõem. Ponho somente dois exemplos:
Um Chefe de Estado não deve em consciência firmar uma lei criminosa sobre o aborto, ainda que esteja obrigado a isso pela Constituição. Com sua ação estaria colaborando com a produção de um mal gravíssimo de forma voluntaria, direta e premeditada. A obrigação legal que lhe obriga a fazê-lo de nenhum modo lhe exime da obrigação moral pessoal à hora de firmar uma lei homicida e repugnante.
Um médico de nenhum modo deve procurar um aborto, ainda que a lei lhe obrigue a fazê-lo. Já sabemos – neste segundo caso com mais certeza –, que a própria lei canônica da Igreja considera gravemente imoral a participação de médicos e enfermeiras em abortos, e a obrigação legal que pudesse exigir-lhes essa ação criminosa não lhes exime da excomunhão automática, latæ sententiæ. Algo semelhante, mutatis mutandis, haverá que dizer de funcionários obrigados legalmente a celebrar "matrimônios" homossexuais, de mestres e professores obrigados legalmente a ensinar doutrinas falsas, gravemente nocivas, etcetera.
E não basta desobedecer as leis injustas; há que combatê-las com todas as forças, procurando sua derrogação de todos os modos possíveis: reuniões de oração, campanhas de opinião, atos legítimos de desobediência civil, manifestações públicas, coleta de assinaturas para um referendo, publicação de artigos nos meios de comunicação, greves, congressos e atos que tenham difusão midiática. E ainda mais:
Os cristãos não devem dar seu voto a partidos políticos que produzem leis criminosas ou que as mantêm vigentes, podendo derrogá-las. E menos ainda devem militar nesses partidos, ainda que isso lhes prive de grandes vantagens sociais e econômicas. Pelo contrario, eles estão obrigados a denunciar a imoralidade desses partidos, devem combatê-los, desmascará-los – se estão disfarçados – e desprestigiá-los por todos os meios lícitos e legais. A Nota doutrinal sobre algumas questões relativas ao compromisso e à conduta dos católicos na vida política, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 24 de novembro de 2002, o ensina claramente:
"A consciência cristã bem formada não permite a ninguém favorecer com o próprio voto a realização de um programa político ou a aprovação de uma lei particular que contenham propostas alternativas ou contrárias aos conteúdos fundamentais da fé e da moral… O compromisso político a favor de um aspecto isolado da doutrina social da Igreja não basta para satisfazer a responsabilidade da busca do bem comum em sua totalidade… Quando a ação política se liga a princípios morais que não admitem derrogações, exceções ou compromisso algum, é que o empenho dos católicos se faz mais evidente e carregado de responsabilidade. Diante destas exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis, com efeito, os crentes devem saber que está em jogo a essência da ordem moral, que concerne ao bem integral da pessoa. Esse é o caso das leis civis", segue dizendo a Nota, em matérias como aborto e eutanásia, falsificação grave do matrimônio e da família, educação dos filhos, tutela de menores, escravidão, liberdade religiosa, economia a serviço da justiça social, o valor da paz (No. 4 do documento).
Todos os governos são "intrinsecamente perversos" se prescindem de Deus e da ordem moral natural e objetiva. Quando eu tratar dos diversos regimes políticos, comprovaremos que essa perversão pode dar-se e se dá em totalitarismos comunistas ou nazis, em democracias liberais, em ditaduras de partidos únicos ou de líderes populares. A todas essas formas de governo são aplicáveis as palavras que Pio XI refere ao comunismo marxista:
"Procurai, veneráveis irmãos, com sumo cuidado que os fiéis não se deixem enganar. O comunismo é intrinsecamente perverso ('communismus cum intrinsecus sit pravus'), e não se pode admitir que colaborem com o comunismo em terreno algum os que querem salvar da ruína a civilização cristã" e o bem comum dos povos! E ainda Pio XI acrescenta uma profecia, que teve e tem cumprimento: "Quanto mais antiga e luminosa seja a civilização criada pelo cristianismo nas nações em que o comunismo logre penetrar, tanto maior será a devastação que nelas exercerá o ódio do ateísmo comunista" (encíclica Divini Redemptoris, No. 60, de 1937).
Também a guerra pode ser lícita para combater leis e governos injustos, que levam um povo à degradação moral e à ruína. Pio XI na encíclica Firmissimam constantiam, de 1937, dirigida aos Bispos do México, seguindo a doutrina tradicional, ensina que "quando se atacam as liberdades originárias da ordem religiosa e civil, não podem suportá-lo passivamente os cidadãos católicos". E nesse texto indica as condições necessárias para que seja lícita uma resistência ativa e armada. É o ensinamento atual que expõe o Catecismo da Igreja Católica:
"A resistência à opressão do poder político não recorrerá legitimamente às armas, senão nas seguintes condições: 1) em caso de violações certas, graves e prolongadas dos direitos fundamentais; 2) depois de ter esgotado todos os outros recursos; 3) se não provocar desordens piores; 4) se houver esperança fundada de êxito; 5) e se for impossível prever razoavelmente soluções melhores" (No. 2243).
É fora de dúvida, por exemplo, que um governo que promove e financia centenas de milhares de abortos, e que converte em "direito" esses assassinatos, comete "violações certas, graves e prolongadas de direitos fundamentais dos cidadãos", concretamente dos mais pobres e inválidos, dos mais necessitados de proteção legal. E também é indubitável que podem dar-se e deram-se circunstâncias históricas em que o povo cristão deve em consciência levantar-se em armas e rebelar-se, como os Macabeus, arriscando com isso suas vidas e seus bens materiais pela causa de Deus e pelo bem comum da nação. Mas atualmente, pelo contrário, quase nunca podem dar-se nas nações as outras condições exigidas para um lícito levantamento do povo em armas. São nações tão sujeitas ao governo do Príncipe deste mundo, Satanás, que é quase impossível que se deem nelas as condições terceira e quarta.
De outras graves questões, como o martírio, a objeção de consciência, os combates jurídicos, as associações católicas sociais e políticas, falarei, com o favor de Deus, ao final desta série, quando tratar mais diretamente do quê devemos fazer hoje os católicos na vida política. Agora estou expondo os princípios doutrinais da Igreja em matéria política.
José María Iraburu, sacerdote.
José María Iraburu, sacerdote.
Pamplona, Espanha.
As ênfases no texto em negrito ou itálico são do próprio autor.
Leia na próxima Sexta feira "princípios doutrinais para o católico na política", terceira parte.
As ênfases no texto em negrito ou itálico são do próprio autor.
Leia na próxima Sexta feira "princípios doutrinais para o católico na política", terceira parte.
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