sexta-feira, 8 de julho de 2011

07. Princípios Doutrinais, V

Continuamos com os princípios fundamentais da doutrina política da Igreja.

6º - O princípio de subsidiariedade, contrário a qualquer forma de totalitarismo de Estado, é um dos fundamentos da doutrina política da Igreja. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica, “segundo o princípio de subsidiariedade, nem o Estado nem qualquer outra sociedade mais ampla devem substituir a iniciativa e a responsabilidade das pessoas e os órgãos intermediários” (no. 1894). É verdade que a complexidade tão grande das sociedades mais desenvolvidas exige que o Estado regule muitos campos da vida social, equilibre desigualdades, favoreça os pobres e enfermos, subsidie os desempregados e aposentados e realize obras importantes que não poderiam ser levadas adiante pela iniciativa privada. Mas nunca deve intervir além do devido, e a tentação totalitária do Estado moderno — comunista, socialista, democrático, ditatorial — é muito grande.

Para todos os cidadãos, mas especialmente para o povo cristão — que não é deste mundo —, é um direito primordial que nenhum Estado sujeite sob a regulação de sua autoridade questões morais, educacionais, sanitárias, econômicas, culturais e religiosas, que podem ser desenvolvidas livremente pela pessoa, a família, o município e outros corpos sociais intermediários. Esse princípio está no próprio coração do pensamento e da tradição da cultura católica, e é fundamental para assegurar os direitos e liberdades reais da pessoa e da sociedade.

O Estado deve promover, estimular e ajudar a iniciativa privada dos cidadãos, mas de modo algum deve suprimi-la, alegando uma inexistente autoridade política anterior ao homem e superior a ele. Nos últimos séculos, sobretudo, a Igreja tem proclamado incessantemente a participação dos cidadãos na prossecução do bem comum, respeitando o princípio de subsidiariedade. E deste modo sempre defendeu o povo dos ataques dos sistemas totalitários ou das agressões encobertas das democracias liberais. 
Leão XIII: “E não se apele para a providência do Estado, porque o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse se formar, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência” (1891, encíclica Rerum novarum, no. 6). Esse princípio tem sido reiterado continuamente na doutrina política da Igreja: nas encíclicas de Pio XI, Quadragesimo anno (1931), Mit brennender sorge (1937), Divini Redemptoris (1937); na radiomensagem Benignitas et humanitas (1944), de Pio XII; nas encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in terris (1963), de João XXIII; na encíclica Populorum progressio (1967), de Paulo VI; nos documentos do Concílio Vaticano II, até chegar a nossos dias.
Bento XVI: “Um Estado que queira prover a tudo e tudo açambarque torna-se fim de contas uma instância burocrática (...) Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam a espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda” (2005, encíclica Deus Caritas Est, no. 28). 
O Catecismo da Igreja Católica explica o princípio de subsidiariedade ao tratar da comunidade humana. Ensina que o homem, por natureza, “tem necessidade de vida social” (no. 1879). E afirma que “uma sociedade é um conjunto de pessoas ligadas de maneira orgânica por um princípio de unidade que ultrapassa cada uma delas” (no. 1880). Mas reconhece que “certas sociedades, como a família e a cidade, correspondem mais imediatamente à natureza do homem. São-lhe necessárias. A fim de favorecer a participação do maior número na vida social, é preciso encorajar a criação de associações instituições de livre iniciativa, ‘com fins econômicos, culturais, sociais, esportivos, recreativos, profissionais, políticos, tanto no âmbito interno das comunidades políticas como no plano mundial’ (citação da encíclica Centesimus annus, no. 16, de João Paulo II, publicada em 1991)” (no. 1882).
“A socialização apresenta também perigos. Uma intervenção muito acentuada do Estado pode ameaçar a liberdade e a iniciativa pessoais. A doutrina da Igreja elaborou o chamado princípio de subsidiariedade. Segundo esse princípio, ‘uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade inferior, privando-a de suas competências, mas deve, antes, apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar sua ação com as dos outros elementos que compõem a sociedade, tendo em vista o bem comum’ (citação da encíclica Centesimus annus, no. 48)” (Catecismo da Igreja Católica no. 1883).
“O princípio de subsidiariedade opõe-se a todas as formas de coletivismo; traças os limites da intervenção do Estado; tem em vista harmonizar as relações entre os indivíduos e as sociedades; tende a instaurar uma verdadeira ordem internacional” (Catecismo da Igreja Católica, no. 1885). É certo que a “família deve ser ajudada e defendida pelas medidas sociais apropriadas”; mas “de acordo com o princípio de subsidiariedade, as comunidades mais amplas cuidarão de não usurpar seus poderes ou de interferir na vida da família” (no. 2209). O princípio de subsidiariedade é universal e há de ser aplicado em todos os campos: educação, saúde, moral, cultura, economia, habitação e recreação. 
O princípio de subsidiariedade pretende, na vida social e política: — que as iniciativas pessoais ou associadas e as atividades de corporações intermediárias sejam promovidas e, neste caso, subsidiadas pelo Estado; — que se proteja em todos os campos a liberdade da pessoa e da família; — que as iniciativas privadas e as públicas colaborem harmoniosamente na produção do bem comum; — que todo cidadão, e concretamente o povo cristão, se veja livre, em sua vida pessoal e familiar, de uma ingerência excessiva do Governo político, e possa desenvolver, até mesmo com a ajuda do Estado, sua forma própria de vida pessoal, familiar, religiosa, e associada; — que o Estado não tenha um acréscimo doentio de funcionários, assistentes, inspetores, comissões fiscalizadoras, num controle e assistencialismo agonizantes; — que não impulsione mais e mais seu poder econômico e administrativo, multiplicando os impostos contributivos, o número de leis e normas, os organismos estatais, sujeitando tudo ao seu controle, a suas licenças, a suas autorizações e subsídios, distribuídos ao seu arbítrio; — que se promova a descentralização conveniente, o pluralismo cultural, social e político, o respeito aos grupos minoritários.

A participação cívica no bem comum, a defesa da subsidiariedade e a luta contra o absolutismo do Estado, seja em formas totalitárias ou democrático-liberais, têm sido sempre um dos principais empenhos da Igreja na política. A Igreja sempre combateu toda forma de absolutismo de Estado, ainda que isso ocorra em formas encobertas com a democracia liberal. Com o passar do tempo, ela foi a primeira, e às vezes a única, a condenar o liberalismo, o nazismo, o comunismo, a democracia relativista, etcetera. Sempre afirmou a primazia original da pessoa, da família e da ordem natural. Sempre procurou a harmoniosa colaboração, na política, da esfera privada com a pública. 
Pio XII: “Uma sã democracia, fundada sobre os princípios imutáveis da lei natural e das verdades reveladas, será decididamente contrária àquela corrupção que atribui à legislação do Estado um poder sem freio e sem limites, e que faz também do regime democrático, apesar das contrárias e vãs aparências, um puro e simples sistema de absolutismo” (1944, radiomensagem Benignitas et humanitas, no. 28). João Paulo II: “uma democracia sem valores se converte facilmente num totalitarismo visível ou encoberto, como demonstra a história” (1991, encíclica Centesimus annus, no. 46); e então “a democracia se converte facilmente numa palavra vazia” (1995, encíclica Evangelium vitæ, no. 70). 
Na Idade Média cristã, a subsidiariedade era muito mais forte na sociedade do que nos tempos modernos. E, consequentemente, era menor o perigo do totalitarismo do Estado invasor. No milênio medieval da Cristandade, mais ou menos do ano 500 ao 1.500, a doutrina política ainda é sã, e mesmo que, evidentemente, não elimine totalmente injustiças, crimes e abusos, estes se dão contra a doutrina católica. Os reis cristãos — entre os quais houve não poucos santos e beatos — tinham um poder muito controlado pela Igreja, os nobres, as cortes, os grêmios e os estamentos sociais, assim como pelas leis e foros jurados, pelos usos e costumes. O campo de sua autoridade política era incomparavelmente menor que o dos governantes modernos. 

Essa é uma realidade que, por exemplo, o sacerdote jesuíta Alfredo Sáenz, comprova com dados certos em sua obra La Cristiandad, una realidad histórica (capítulo III, A ordem política da Cristandade: Fundação Gratis Date, Pamplona, 2005). Nesse livro vê até que ponto, a partir do Renascimento, a vida social e política europeia da Idade Média tem sido caluniada e falsificada. As obras de Régine Pernoud — como O que é a Idade Média?, Para acabar com a Idade Média, A mulher no tempo das catedrais — podem ser também para muitos um descobrimento da verdade social e política, cultural e estética da Idade Média cristã. 

O Estado moderno foi se formando como um Leviatã monstruoso, a partir do Renascimento. Desde então foi configurando poderes absolutos e totalitários, que arrasam cada vez mais o princípio político da subsidiariedade. Lutero começa a submeter-se aos príncipes alemães; as monarquias nacionais se tornam absolutas; os reis liberais, por meio de seus ministros maçônicos, governam para o povo (?), mas sem o povo. O josefinismo sujeita a Igreja ao Estado. O mundo do poder político vai se tornando cada vez mais obscuro e anticristão: a Revolução Francesa, a ditadura napoleônica, os Impérios, as inumeráveis guerras, o nazismo e o fascismo, os horrores da União Soviética e da China, e das nações que estavam sujeitas a elas, as guerras civis, as nações divididas em partidos contrapostos, os partidos internacionais... Essa Ordem Mundial injusta, dirigida por pensadores sinistros, leva diretamente ao século XX, o mais homicida, sem dúvida alguma, tanto pelas guerras como pelo aborto, de todos os séculos da história.

Todos os horrores aludidos procedem de erros gravíssimos na filosofia política. E pode-se afirmar que o abandono da tradição política e social da cultura católica conduz ao atropelo sistemático do princípio de subsidiariedade, e ao consequente surgimento da besta política moderna, cada vez mais poderosa. Recordarei apenas alguns pensadores mais influentes no totalitarismo da política moderna. Comprovaremos, assim, que os horrores históricos modernos não se produzem apesar da doutrina política sã, mas principalmente por causa de doutrinas falsas. 

Nicolau Maquiavel (1469-1525), florentino, a quem se deve o nome “Estado”, em sua obra O Príncipe (1513), separa a vida política do respeito a Deus e à ordem natural, e por meio da “razão de Estado” impulsiona os governantes, eliminando os limites de suas decisões. 

Thomas Hobbes (1588-1679), inglês, em seu livro Leviatã (1651), muito contrário à Igreja e ao cristianismo, é considerado um dos principais fundadores do absolutismo político moderno. 

— Jean Jacques Rousseau (1712-1778), em O Contrato Social (1761), sujeita a pessoa ao Estado pela via do contratualismo político. A pessoa se deve ao Estado e ao voto majoritário, já que “a vontade geral não pode errar”. 

Johann Fichte (1762-1814), filósofo idealista, com seus Discursos à nação alemã (1806), está na origem do nacionalismo germânico, e suas obras, como Os caracteres da época contemporânea (1806), dão fundamento ao Estado totalitário: “em nossa época, mais que qualquer outro tempo precedente [e nisso diz grande verdade], cada cidadão, com todas as suas forças, está submetido à finalidade do Estado, está completamente penetrado por ele e se converteu em seu instrumento”. 

Hegel, Georg Wilhelm Friedrich (1770-1831) leva ao extremo o absolutismo totalitário do Estado, e com uma fundamentação filosófica mais ampla e coerente vem a identificar o Estado com Deus:
“A entrada de Deus no mundo é o Estado” (em Filosofia do Direito, apêndice). O Estado é um “deus no mundo”, quer dizer, um deus imanente à realidade social política. “O homem deve ao Estado tudo o que é, e somente no Estado tem sua essência. Todo valor, toda realidade espiritual os tem o homem somente por meio do Estado”. O Estado, pois, considerado como algo divino, “deve” sujeitar a ele todas as realidades da nação e de cada pessoa.
Algumas Antiutopias, descrevendo situações sociais de controle absoluto, alertam contra os Estados totalitários, comunistas, socialistas, liberais, ditatoriais. Cito somente duas: Aldous Huxley (1894-1963), em sua obra Um mundo feliz (1932), deixa todos os indivíduos sob o absoluto poder científico e condutor de Ford, que os controla mediante o soma, alimento-medicamento-estimulan​te. E George Orwell (1903-1950), em sua novela 1984 (1949), descreve o governo do Grande Irmão, que servindo-se de uma polícia onipresente do pensamento, controla a mente e a conduta de todo o povo.

Os sonhos sempre partem de uma realidade. Esses sonhos-pesadelos sobre sociedades submetidas a poderes totalitários têm uma realidade história verdadeira de fundo: o Leviatã, os Estados modernos monstruosos, prepotentes, invasores. Esses pesadelos jamais foram sonhados no milênio da Cristandade.


José María Iraburu, sacerdote.
Pamplona, Espanha.
As ênfases no texto em negrito ou itálico são do próprio autor.
Leia na próxima Sexta feira um texto sobre o princípio de subsidiariedade e os estados liberais.

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