sábado, 25 de junho de 2011

06. Princípios Doutrinais, IV

Continuamos com os princípios fundamentais da doutrina política da Igreja. 

5º– A Igreja é neutra quanto à forma dos regimes políticos. Este é um princípio doutrinal que sempre foi ensinado e praticado pela Igreja. Nele se fundamenta tanto a liberdade da Igreja ante o Estado, como o legítimo pluralismo político entre os cristãos. Efetivamente, a Igreja «em virtude de sua missão e natureza, não está unida a nenhuma forma particular de civilização humana nem a sistema algum político, econômico ou social» (Vat. II, GS 42d). 

Pio XI: «a Igreja católica, não estando sob nenhum aspecto unida a uma forma de governo mais que a outra, com a condição de que fiquem a salvo os direitos de Deus e da consciência cristã, não encontra dificuldade em entender-se com as diversas instituições políticas, sejam monárquicas ou republicanas, aristocráticas ou democráticas» (1933, enc. Dilectissima Nobis 6). Vaticano II: «as modalidades concretas pelas que a comunidade política organiza sua estrutura fundamental e o equilíbrio dos poderes públicos podem ser diferentes, segundo o gênio da cada povo e a marcha de sua história» (GS 74f; cf. João XXIII, 1963, Pacem in terris 67; Catecismo 1901). 

A Igreja, por outro lado, não é neutra quanto às ideologias políticas que podem cristalizar-se depois em diversas formas de Estado. O Vaticano II e o Magistério apostólico posterior continuaram ensinando a doutrina já claramente expressada nas grandes encíclicas monográficas do século XIX e primeira metade do XX: 1878, Quod apostolici muneris (contra o socialismo laicista); 1888, Libertas præestantissimum (contra o liberalismo); 1937, Mit brennender sorge (contra o nazismo); 1937, Divini Redemptoris (contra o comunismo), etc. É evidente que algumas ideologias políticas são conciliáveis com a ordem natural e a fé católica, mas outras são inconciliáveis, e a Igreja não é neutra quanto a elas, mas as denuncia e combate. 

A Igreja sabe bem que pode haver Estados monstruosos, verdadeiras Bestas apocalípticas, que ainda que guardem formas estruturalmente legítimas, são corruptos e corruptores. O Catecismo ensina que «a autoridade só se exerce legitimamente se busca o bem comum do grupo em questão e se para alcançá-lo emprega meios moralmente lícitos. Se os dirigentes proclamarem leis injustas ou tomarem medidas contrárias à ordem moral, estas disposições não podem obrigar em consciência. “Em tal situação, a própria autoridade se desmorona por completo (plane corruit) e origina-se uma iniquidade horrível” (João XXIII, Pacem in terris 51)» (1903). 

Monarquia, aristocracia e democracia são os três tipos fundamentais de autoridade política. Em todos os regimes políticos se dão, combinados de um ou outro modo, os três princípios: monarquia – um –, aristocracia – alguns –, e democracia – todos. A diversidade de combinações possíveis destes três elementos na constituição dos Estados é inumerável, e mal admite uma tentativa de classificação. Pode haver reinos nos quais o Rei não tem praticamente poder algum. Pode haver democracias – como a dos Estados Unidos – cuja constituição dê ao Presidente um máximo de autoridade pessoal, desconhecido nos demais Estados, fora aqueles que são totalitários.

O regime político ideal é misto. Como ensina Santo Tomás, «a ótima política é aquela na qual se combinam harmoniosamente a monarquia, em que um preside, a aristocracia, na medida em que muitos mandam segundo a virtude [a especial qualidade pessoal], e a democracia, ou poder do povo, já que os governantes podem ser eleitos no povo e pelo povo» (STh I-II,105,1; cf. De Regno lib. I, caps. 1-2). 

De fato, em uma ou outra proporção, todos os Estados têm um princípio monárquico (rei, presidente, primeiro ministro, xá, governador, regente, califa, imperador), um elemento aristocrático (conselho real, conselho de ministros, nobres, partido único, deputados e senadores) e um componente democrático (eleições periódicas, assembleia nacional, representantes de tribos, de regiões, de etnias, de grêmios).

Deve eleger-se a forma concreta de governo «segundo o gênio da cada povo e a marcha de sua história» (Vat. II, GS 74f), tendo em conta sua tradição, sua cultura e também suas circunstâncias. Em situações, por exemplo, de guerra, de grandes calamidades ou de uma decomposição caótica da nação, causada às vezes por um poder democrático mal exercido, pode convir por um tempo uma forma de governo forte e personalista, necessária enquanto a crise supera-se, mas que não deve se prolongar em excesso ou se fazer dinástica. Se há de salvar-se um barco envolvido em uma tormenta terrível, governá-lo por voto em assembleia nesse caso não vale, porque se afundaria a nave durante os debates. É a hora das ordens rápidas e individuais. Pelo contrário, em tempos de paz costuma ser muito conveniente uma ampla participação dos cidadãos, que procure o bem comum.

Os cristãos devem aceitar o regime político de sua nação, dando ao César o que é do César (Mt 22,21), como já vimos (97). É o mandato de Cristo e também dos apóstolos: «submetam-se todos às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não proceda de Deus, e as que existem, por Deus foram constituídas» (Rm 13,1). Quando São Paulo mandava isto imperava Nero. Um exemplo eloquente podemos encontrar na França posterior à Revolução. Meia dúzia de regimes foram-se sucedendo em uns poucos decênios, e sempre foram reconhecidos pela Igreja. Leão XIII recorda-o: 

É preciso «aceitar sem reservas, com a lealdade perfeita que convém ao cristão, o poder civil na forma em que de fato existe. Assim foi aceite na França o primeiro Império ao dia seguinte de uma horrível e sangrenta anarquia; assim foram aceites os outros poderes, tanto monárquicos como republicanos, que se foram sucedendo até nossos dias… Por estes motivos, Nós dissemos aos católicos franceses: aceitai a República, isto é, o poder constituído e existente entre vós; respeitai-o, obedecei-o, porque representa o poder derivado de Deus» (1892, cta. Notre consolation 10-11). Já tratei de casos extremos de tirania ou anarquia, nos quais uma guerra está justificada. 

Todas as formas políticas se podem perverter, quando é perverso o espírito que as rege. A monarquia absoluta pode fazer-se tirania, o regime predominantemente aristocrático pode degradar-se em uma oligarquia injusta e opressora, bem como as formas democráticas podem dar na demagogia ou inclusive em certas modalidades encobertas de totalitarismo. A correção formal de um Estado ou de sua Constituição não garante em absoluto a bondade das leis que se gerem. 

Leão XIII: «em um regime cuja forma seja quiçá a mais excelente de todas, a legislação pode ser detestável, e, pelo contrário, dentro de um regime cuja forma seja a mais imperfeita pode se achar às vezes uma legislação excelente» (1892, enc. Au milieu des sollicitudes 26). A Constituição espanhola, em sua art. 32, estabelece que “o homem e a mulher têm direito a contrair matrimônio” (o homem e a mulher: matrimônio: está claro, não?). E a Constituição da Argentina diz em seu Preâmbulo que tudo o que faz e dispõe o faz «invocando a Deus, fonte de toda               razão e justiça». Em ambos casos, no entanto, calcando um artigo ou calcando o princípio do preâmbulo, se chegou à aberração do “matrimônio” homossexual.

A Igreja não deve se unir a nenhum regime político concreto, como se ele fosse em si o melhor, o que ela prefere, independentemente da cultura, tradição e circunstâncias de uma nação. São Pio assinalava que «há um erro e um perigo em enfeudar, por princípio, o catolicismo em uma forma de governo» (1910, cta. Notre charge apostolique 31). E quando por um tempo uma Igreja local ou uma parte do povo cristão tem incorrido nesse erro, se seguiram muito graves males. Não há que sacralizar a monarquia, nem satanizar a república. Também não há que adorar a democracia, e muito menos a democracia liberal pluripartidista, nem devem ser consideradas ilícitas as outras formas de governo. 

Quando se consagra uma forma concreta de governo, ainda que não seja na doutrina, mas sim na prática, sobrevêm muitos erros de péssimas consequências: –há nações e organismos internacionais que tentam impor a um povo um regime político que lhe é estranho; –um governo é julgado não pelos conteúdos bons ou maus de suas leis e instituições, senão por seu regime político constitucional; –pode inclusive dar-se que uma Igreja local apoie um regime «politicamente correto», que produz leis perversas, e que se oponha a outro projeto político que estima «incorreto», ainda que seja promotor de leis justas (!); –criam-se divisões muito daninhas entre os cristãos da mesma nação. Tudo isto sucede quando se esquece que «o cristão deve reconhecer a legítima pluralidade de opiniões temporais discrepantes» (Vat. II, GS 75e). 

Outra coisa diferente é que os cristãos de uma nação, ou a maioria deles, em umas determinadas circunstâncias históricas, se inclinem por uma forma política determinada e a promovam. É, pois, urgente recuperar este princípio fundamental da doutrina política da Igreja, tal como o expressa A. Desqueyrat: 

«A Igreja nunca condenou as formas jurídicas do Estado: nunca condenou a monarquia –absoluta ou moderada –, nunca condenou a aristocracia – estrita ou ampla –, nunca condenou a democracia – monárquica ou republicana –. No entanto, condenou todos os regimes que se fundamentam em uma filosofia errônea» (L’enseignement politique de l’Église, Spes 1960, Inst. Cath. de Paris, I,191). 

Prefere hoje a Igreja a democracia às outras diversas formas de governo? Circunscrevo a pergunta, por simplificar, ao âmbito das nações desenvolvidas do Ocidente. E começo por dizer que hoje a Igreja mantém como sempre sua neutralidade para com as diversas formas de governo. Nos textos que seguem pode-se comprovar que o que a Igreja certamente aprecia é a participação dos cidadãos na vida sócio-política. Mas os textos que cito, e outros semelhantes, não afirmam claramente que a democracia liberal pluripartidista – tal como se dá no Ocidente – seja uma verdadeira democracia, e que essa participação política dos cidadãos que a Igreja propugna seja nela certamente maior que em outras formas existentes ou possíveis de governo. Pelo contrário, o põem em dúvida ou o negam. 

–Vaticano II: «é necessário estimular em todos a vontade de participar nos esforços comuns. Merece louvor o modo de fazer daquelas nações nas quais a maior parte dos cidadãos participa com verdadeira liberdade na vida pública» (GS 31c). «Com o desenvolvimento cultural, econômico e social consolida-se na maioria o desejo de participar mais plenamente na ordenação da comunidade política» (73c).

–João Paulo II: «A Igreja aprecia o sistema da democracia, na medida em que assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade de eleger e controlar seus próprios governantes, ou bem a de os substituir oportunamente de maneira pacífica–. Por isto mesmo, não pode favorecer a formação de grupos dirigentes restringidos que, por interesses particulares ou por motivos ideológicos, usurpam o poder do Estado» (1991, enc. Centesimus annus 46). 

«Se hoje adverte-se um consenso quase universal sobre o valor da democracia, isto se considera um positivo “sinal dos tempos”, como também o Magistério da Igreja pôs em  relevo várias vezes (cf. … Pio XII, Radiomensagem 24-XII-1944). Mas o valor da democracia mantém-se ou cai com os valores que encarna e promove… Na base destes valores não podem estar provisórias e volúveis “maiorias” de opinião, mas só o reconhecimento de uma lei moral objetiva que, enquanto “lei natural” inscrita no coração do homem, é ponto de referência normativa da própria lei civil». Por isso, quando «o ceticismo chegar a pôr em dúvida até os princípios fundamentais da lei moral, o próprio ordenamento democrático se tremeria em seus fundamentos, se reduzindo a um puro mecanismo de regulação empírica de interesses diversos e contrapostos… Em uma situação assim, a democracia se converte facilmente em uma palavra vazia» (1995, enc. Evangelium vitæ 70). 

–Bento XVI tem advertido com frequência que uma democracia sem valores cai no relativismo, e que este conduz diretamente ao totalitarismo. Aludindo ao santo Cura d’Ars, recordava que viveu no ambiente de uma França pós revolucionária: «Se então havia uma ditadura do racionalismo, agora se registra em muitos ambientes uma espécie de ditadura do relativismo» (5-VIII-2009). Ou dito em outras palavras: «quando a lei natural e a responsabilidade que esta implica se negam, se abre dramaticamente o caminho ao relativismo ético no plano individual e ao totalitarismo do Estado no plano político» (16-VI-2010). 

Hoje a Igreja não prefere certamente uma democracia liberal, agnóstica e relativista, sustentada por uma pluralidade de partidos alternantes, a qualquer outro regime de governo que se fundamente melhor em Deus, na ordem natural e nas tradições próprias da cada povo. E há que reconhecer que hoje a grande maioria das democracias no Ocidente são liberais, agnósticas e relativistas. 
                                                  
Afirmemos, em fim, singelamente que uma democracia liberal e relativista não é propriamente uma democracia, mas uma falsificação, uma corrupção da democracia. Não poucas vezes tem sido denunciada esta realidade pelo recente Magistério apostólico de João Paulo II e de Bento XVI. Suas advertências atuais para que se dê uma democracia verdadeira vêm a ser as mesmas exigências que indicava faz anos Pio XII (1944, radiom. Benignitas et humanitas). 

O tema é muito grave, e espero, com o favor de Deus, poder tratá-lo mais amplamente em meu próximo artigo, no qual precisamente considerarei 5º.–o princípio de subsidiariedade e sua contrapartida, o totalitarismo de Estado em qualquer de suas variadas formas, também, por suposto, na democracia liberal. Em todas elas a participação real dos cidadãos na busca do bem comum é mínima. Está sequestrada pelo Estado totalitário, gerenciado abusivamente pelos partidos que estão no poder, pelo partido único ou pelo chefe popular carismático.

José María Iraburu, sacerdote.
Pamplona, Espanha.
As ênfases no texto em negrito ou itálico são do próprio autor.

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