quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Católicos e Política: Princípios Doutrinais (9)

O Estado laico e o Estado laicista. A Igreja sempre ensinou que o poder religioso e o poder civil são distintos, e que ambos devem colaborar assiduamente, pois os dois estão a serviço do homem e da sociedade. A descristianização progressiva das nações no Ocidente foi levando, primeiro de fato, e por convicção depois, a considerar a separação do Estado e da Igreja como um valor positivo. Contudo, na realidade histórica, essa separação veio de fato a entender-se umas vezes como não-colaboração, e outras como oposição, isto é, como laicismo. Não obstante, se foi impondo entre os católicos liberais – hoje quase todos o são em matérias políticas – a convicção de que, dentro do pluralismo cultural das sociedades atuais do Ocidente, há que promover o Estado laico, rechaçando, isso sim, o Estado laicista. A «sã laicidade» se contrapõe assim ao «laicismo». Mas esta afirmação há de ser precisada em dois pontos principais.

–1º. O «Estado laico» nunca foi proposto como ideal na doutrina política da IgrejaE a expressão «sã laicidade» se empregou sempre em contraposição ao «laicismo hostil». Não foi integrada sistematicamente, por meio de encíclicas ou documentos monográficos importantes, na doutrina política da Igreja. Antes, foi usada de modo ocasional em atos civis e diplomáticos. Mas a doutrina política da Igreja não se deve buscá-la em discursos pontifícios de cortesia, ou na saudação a um Presidente, ou na breve alocução do Papa em um aeroporto.

Como é lógico, contudo, os políticos católicos liberais malminoristas, isto é, quase todos os católicos políticos, tomaram atualmente o lema como bandeira: o Estado deve ser laico, mas não laicista. Na realidade esse é um princípio falso, que extingue a atividade política dos católicos, e leva o povo cristão a uma apostasia cada vez mais profunda, através da secularização progressiva da sociedade, cada vez mais fechada a Deus.

Pio XII, depois dos horrores da II Guerra Mundial, no ambiente esperançoso que trouxeram as democracias liberais vitoriosas, aludiu positivamente a uma «legítima e sã laicidade» da comunidade política (Disc. à colônia de Las Marcas em Roma 23-III-1958). E nos últimos decênios, de vez em quando, aparece a expressão em discursos dos Papas, usada sempre, como digo, em contraposição ao «laicismo ideológico ou separação hostil entre as instituições civis e as confissões religiosas» (João Paulo II, exort. apost. Ecclesia in Europa 117).

Bento XVI, p. ex., ao regressar a Roma depois de uma viagem aos Estados Unidos, disse em uma Alocução geral (30-IV-2008): «No encontro com o senhor Presidente, em sua residência, rendi homenagem a esse grande país, que desde os inicios se edificou sobre a base da feliz conjugação entre princípios religiosos, éticos e políticos, e que continua sendo um exemplo válido de sã laicidade, em que a dimensão religiosa, na diversidade de suas expressões, não só se tolera, mas também se valoriza como “alma” da nação e garantia fundamental dos direitos e dos deveres do homem».

A afirmação que sublinhei pode entender-se referida «ao ideal dos fundadores», «à alma do povo» ou a suas «tradições» próprias, mas ocasionaria certa perplexidade se se aplicasse à atual Administração política da nação. Não podemos ignorar que os Estados Unidos, com suas potentíssimas fundações, com as entidades nacionais e internacionais que promove, e também às vezes com o apoio e financiamento do Governo de turno, encabeça no mundo a difusão de gravíssimos males: anticoncepção, abortos, ideologia do gênero, etc. E neste sentido não é «um exemplo válido de sã laicidade». Em todo caso, o próprio Bento XVI, em um discurso que cito ao fim deste artigo, nos explica com grande precisão e claridade o verdadeiro significado da laicidade e da sã laicidade.

–2º. Todos os Estados laicos são laicistas. Don José María Petit Sullá, de grata memoria (+2007; Schola Cordis Iesu, Sociedad Tomista Internacional, catedrático de Filosofia na Universidade de Barcelona), dizia que «um Estado laico – totalitário ou democrático – não pode legislar mais que de acordo com o princípio de que a sociedade, que ele rege, há de ser laica. E isto implica que velará para que não se faça presente a religião e a Igreja nesta sociedade civil»; isto é, será um Estado laicista.

«Uma sociedade laica não é um terreno comum a crentes e não crentes. O sofisma se reduz a algo tão simples como absurdo. Quer-se introduzir a ideia de que, sendo a afirmação da existência de Deus uma “opção” não compartilhada por todos, o terreno comum entre dizer “Deus existe” e a proposição “Deus não existe” é “organizemos a sociedade sobre a base comum de que Deus não existe”. Base comum?… Não existe una base comum a duas proposições contraditórias. E a que se escolheu e se impõe é “Deus não existe”. A proposta de um Estado laico não laicista é um impossível lógico. Todo Estado laico é, pelo mero fato de sê-lo, um Estado laicista, isto é, que tende sistematicamente a produzir uma sociedade laica, isto é, a separar os homens da religião e, em definitiva, de Deus» (¿Existe un Estado laico no laicista? em «Cristiandad» nº 882, I-2005).

É laicista o Estado que não cumpre as obrigações que tem para com Deus, Cristo e a Igrejae que em seguida enumero.

–É laicista o Estado laico que não cumpre «o dever de render a Deus um culto autêntico [como] corresponde ao homem individual e socialmente» (Catecismo 2105). Quiçá permita a liberdade de cultos sem problemas, mas enquanto Estado, se nega a si mesmo até a possibilidade de pronunciar publicamente o nome de Deus. Contudo, esta situação para São Paulo é «inescusável, porquanto conhecendo a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes obscureceu o coração insensato. Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram à criatura em vez do Criador, que es bendito pelos séculos. Amém! Por isso Deus os entregou às paixões vergonhosas» (Rm 1,19-26).

–É laicista o Estado laico que prescinde de Deus na edificação da cidade temporal, «como se não existisse». Que esta hipótese oriente sistematicamente a atividade política é inadmissível: é culpável e ateizante.

João XXIII: «a insensatez mais característica de nossa época consiste no intento de estabelecer uma ordem temporal sólida e proveitosa sem apoiá-la em seu fundamento indispensável, ou, o que é o mesmo, prescindindo de Deus; e querer exaltar a grandeza do homem cegando a fonte da qual brota e se nutre, isto é, obstaculizando e, se fosse possível, aniquilando a tendência inata da alma para Deus. Os acontecimentos de nossa época, contudo, que cortaram em flor as esperanças de muitos e arrancaram lágrimas a não poucos, confirmam a verdade da Escritura: “Se o Senhor não constrói a casa, em vão se cansam os pedreiros”» (enc. Mater et magistra 217).

Concílio Vaticano II: «se autonomia do temporal quer dizer que a realidade criada é independente de Deus e que os homens podem usá-la sem referência ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a falsidade de tais asserções. A criatura sem o Criador desaparece» (GS 36).

–É laicista o Estado laico que não reconhece mais que um Ser supremo no sentido deísta, isto é, em referência a um Deus que existe, mas que não atua em nada do curso das realidades históricas. Isso permite ao Estado reduzir a zero a influência do Criador na cultura, nas leis e na sociedade do mundo que Ele criou e que conserva no ser e a vida.

–É laicista o Estado laico que reconhece a Deus, mas rechaça a Cristo e à Igreja, que são para os homens a plena epifania do único Deus verdadeiro. 

«É preciso que a concepção cristã da vida e os ensinamentos morais da Igreja continuem sendo os valores essenciais que inspirem todas as personas e grupos que trabalham pelo bem da nação… A liberdade humana e seu exercício no campo da vida individual, familiar e social, assim como a legislação que serve de marco para a convivência na comunidade política, encontram seu ponto de referência e sua justa medida na verdade sobre Deus e sobre o homem» (João Paulo II, ao presidente de Argentina 17-XII-1993).

–É laicista o Estado laico que não favorece na nação a vida religiosa. Para que um Estado laico seja lícito não basta que permita não persiga a religião, pois além disso tem o dever de protegê-la e ajudá-la. A doutrina tradicional da Igreja neste ponto, amplamente exposta (por exemplo, Leão XIII, enc. Immortale Dei 3-9), é reiterada pelo Vaticano II: «o poder civil, cujo fim próprio é cuidar do bem comum temporal, certamente, deve reconhecer a vida religiosa dos cidadãos e favorecê-la» (DH 1).

–É laicista o Estado laico que não se fundamenta nos princípios objetivos da lei natural, que prescinde dela ou a nega, vindo a estabelecer necessariamente na nação a ditadura do relativismo. Como dizia João Paulo II, «uma política privada de princípios éticos sãos leva inevitavelmente ao declínio da vida social e à violação da dignidade e dos direitos da pessoa humana» (Disc. aos Bispos da Polônia 15-I-1993). Concretamente, um Estado abortista é um Estado criminoso, que permite ou favorece o assassinato de centenas de milhares de seus cidadãos. E quase todos os Estados modernos são abortistas.

Os modernos Estados laicos, por coerência doutrinal e prática, não cumprem nenhuma das condições requeridas para uma sã laicidade, e por isso são laicistas. Dito em outros termos: a sã laicidade não existe, nem pode existir. Esta expressão, como disse, só tem um sentido válido para contrapô-la ao laicismo abertamente hostil a Deus e a sua Igreja. Mas não serve para mais. De nenhum modo vale como ideal político cristão.

A doutrina de Bento XVI sobre a «laicidade» e a «sã laicidade», exposta em um discurso ao congresso da União de Juristas Católicos italianos (9-XII-2006), segundo o que eu conheço, é a mais ampla e exata das formuladas pelo Magistério apostólico.

–A «laicidade» é uma palavra que há de ser entendida em sua história política real, e não simplesmente como um termo abstrato, ao qual se pode dar este ou outro conteúdo de forma ideológica e arbitrária. Desta convicção parte o ensinamento do Papa: «para compreender o significado autêntico da laicidade e explicar suas acepções atuais, é preciso ter em conta o desenvolvimento histórico que teve o conceito.

«A laicidade, nascida como indicação da condição do simples fiel cristão [leigo], não pertencente nem ao clero nem ao estado religioso, durante a Idade Média revestiu o significado de oposição entre os poderes civis e as hierarquias eclesiásticas, e nos tempos modernos assumiu o de exclusão da religião e de seus símbolos da vida pública mediante seu confinamento ao âmbito privado e à consciência individual. Assim, sucedeu que ao termo “laicidade” se atribuiu uma acepção ideológica oposta à que tinha em sua origem. 

«Em realidade, hoje a laicidade se entende comumente como exclusão da religião dos diversos âmbitos da sociedade e como seu confinamento no âmbito da consciência individual. A laicidade se manifestaria na total separação entre o Estado e a Igreja, não tendo esta última título algum para intervir sobre temas relativos à vida e ao comportamento dos cidadãos. A laicidade comportaria inclusive a exclusão dos símbolos religiosos dos lugares públicos destinados ao exercício das funções próprias da comunidade política: escritórios, escolas, tribunais, hospitais, prisões, etc. 

«Baseando-se nestas múltiplas maneiras de conceber a laicidade, se fala hoje de pensamento laico, de moral laica, de ciência laica, de política laica. Com efeito, na base desta concepção há uma visão a-religiosa da vida, do pensamento e da moral, isto é, uma visão na qual não há lugar para Deus, para um Mistério que transcenda a pura razão, para uma lei moral de valor absoluto, vigente em todo tempo e em toda situação. Somente dando-se conta disto se pode medir o peso dos problemas que guarda um termo como laicidade, que parece ter-se convertido no emblema fundamental da pós-modernidade, em especial da democracia moderna. 

«Portanto, todos os crentes, e de modo especial os crentes em Cristo, têm o dever de contribuir a elaborar um conceito de laicidade que, por una parte, reconheça a Deus e a sua lei moral, a Cristo e a sua Igreja, o lugar que lhes corresponde na vida humana, individual e social, e que, por outra, afirme e respeite “a legítima autonomia das realidades terrenas”, entendendo com esta expressão – como afirma o concílio Vaticano II – que “as coisas criadas e as próprias sociedades gozam de leis e valores próprios que o homem há de descobrir, aplicar e ordenar paulatinamente”» (GS 36).

–A «sã laicidade» se dá somente se se produz um conjunto de condições, leis e atitudes.

«Esta afirmação conciliar [GS 36] constitui a base doutrinal da “sã laicidade”, a qual implica que as realidades terrenas certamente gozam de uma autonomia efetiva da esfera eclesiástica, mas não da ordem moral. Portanto, à Igreja não compete indicar qual ordenamento político e social se deve preferir, mas é o povo quem deve decidir livremente os modos melhores e mais adequados de organizar a vida política. Toda intervenção direta da Igreja neste campo seria una ingerência indevida.

«Por outra parte, a “sã laicidade” implica que o Estado não considere a religião como um simples sentimento individual, que se poderia confinar ao âmbito privado. Ao contrário, a religião, ao estar organizada também em estruturas visíveis, como sucede com a Igreja, se há de reconhecer como presença comunitária pública. Isto supõe, ademais, que a cada confissão religiosa (na medida em que não esteja em contraste com a ordem moral e não seja perigosa para a ordem pública) se garanta o livre exercício das atividades de culto –espirituais, culturais, educativas e caritativas – da comunidade dos crentes.

«À luz destas considerações, certamente não é expressão de laicidade, mas sua degeneração em laicismo, a hostilidade contra qualquer forma de relevância política e cultural da religião; em particular, contra a presença de todo símbolo religioso nas instituições públicas.

«Tampouco é sinal de sã laicidade negar à comunidade cristã, e a quem a representa legitimamente, o direito de pronunciar-se sobre os problemas morais que hoje interpelam a consciência de todos os seres humanos, em particular dos legisladores e dos juristas. Com efeito, não se trata de ingerência indevida da Igreja na atividade legislativa, própria e exclusiva do Estado, mas da afirmação e da defesa dos grandes valores que dão sentido à vida da pessoa e salvaguardam sua dignidade. Estes valores, antes de ser cristãos, são humanos; por isso diante deles não pode ficar indiferente e silenciosa a Igreja, que tem o dever de proclamar com firmeza a verdade sobre o homem e sobre seu destino […] 

«Aos cristãos nos corresponde mostrar que Deus, ao contrário, é amor e quer o bem e a felicidade de todos os homens. Temos o dever de fazer compreender que a lei moral que nos deu, e que se nos manifesta com a voz da consciência, não tem como finalidade oprimir-nos, mas livrar-nos do mal e fazer-nos felizes. Trata-se de mostrar que sem Deus o homem está perdido, e que excluir a religião da vida social, em particular a marginação do cristianismo, socava as próprias bases da convivência humana, pois antes de ser de ordem social e política, estas bases são de ordem moral».

Só sob o cetro de Cristo Rei é possível a sã laicidade. Quando Ele diz «sem mim não podeis fazer nada», suas palavras se aplicam tanto ao aperfeiçoamento espiritual da pessoa como ao ordenamento político da sociedade (Jo 15,5). E é que «o mundo inteiro está em poder do Maligno» (1Jo 5,19), e unicamente o Cristo Redentor tem poder sobre-humano e divino para liberar o homem e as nações do cativeiro do «Príncipe [e Deus] deste mundo» (Jo 12,31; 2Cor 4,4). Quem pensa que um Estado laico pode chegar a uma sã laicidade sem a verdade e a graça de Cristo Rei, ou é um pelagiano, no melhor dos casos, ou no pior, um apóstata ou simplesmente um ateu.

«A Encarnação é o acontecimento decisivo da história; dele depende a salvação tanto do indivíduo como da sociedade em todas as suas manifestações. Se falta Cristo, ao homem falta o caminho para alcançar a plenitude de sua elevação e de sua realização em todas as suas dimensões, sem excluir a esfera social e política» (João Paulo II, Ângelus 17-III-1991).

E termino com esta referência a uma realidade concreta extremadamente grave: o aborto. O diabo é «mentiroso e homicida desde o principio» (Jo 8,44): o diabo assegura que existe um «direito ao aborto», e assim consegue muitos milhões anuais de homicídios. Por isso, quando comprovamos que o conjunto unânime dos modernos Estados laicos é confessionalmente abortista, concluímos que esses Estados mentirosos e homicidas são diabólicos. São Estados anti-Cristo, pois Cristo é «o Autor da vida» (At 3,15). 

José María Iraburu, sacerdote.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

07. Princípios Doutrinais, V

Continuamos com os princípios fundamentais da doutrina política da Igreja.

6º - O princípio de subsidiariedade, contrário a qualquer forma de totalitarismo de Estado, é um dos fundamentos da doutrina política da Igreja. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica, “segundo o princípio de subsidiariedade, nem o Estado nem qualquer outra sociedade mais ampla devem substituir a iniciativa e a responsabilidade das pessoas e os órgãos intermediários” (no. 1894). É verdade que a complexidade tão grande das sociedades mais desenvolvidas exige que o Estado regule muitos campos da vida social, equilibre desigualdades, favoreça os pobres e enfermos, subsidie os desempregados e aposentados e realize obras importantes que não poderiam ser levadas adiante pela iniciativa privada. Mas nunca deve intervir além do devido, e a tentação totalitária do Estado moderno — comunista, socialista, democrático, ditatorial — é muito grande.

Para todos os cidadãos, mas especialmente para o povo cristão — que não é deste mundo —, é um direito primordial que nenhum Estado sujeite sob a regulação de sua autoridade questões morais, educacionais, sanitárias, econômicas, culturais e religiosas, que podem ser desenvolvidas livremente pela pessoa, a família, o município e outros corpos sociais intermediários. Esse princípio está no próprio coração do pensamento e da tradição da cultura católica, e é fundamental para assegurar os direitos e liberdades reais da pessoa e da sociedade.

O Estado deve promover, estimular e ajudar a iniciativa privada dos cidadãos, mas de modo algum deve suprimi-la, alegando uma inexistente autoridade política anterior ao homem e superior a ele. Nos últimos séculos, sobretudo, a Igreja tem proclamado incessantemente a participação dos cidadãos na prossecução do bem comum, respeitando o princípio de subsidiariedade. E deste modo sempre defendeu o povo dos ataques dos sistemas totalitários ou das agressões encobertas das democracias liberais. 
Leão XIII: “E não se apele para a providência do Estado, porque o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse se formar, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência” (1891, encíclica Rerum novarum, no. 6). Esse princípio tem sido reiterado continuamente na doutrina política da Igreja: nas encíclicas de Pio XI, Quadragesimo anno (1931), Mit brennender sorge (1937), Divini Redemptoris (1937); na radiomensagem Benignitas et humanitas (1944), de Pio XII; nas encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in terris (1963), de João XXIII; na encíclica Populorum progressio (1967), de Paulo VI; nos documentos do Concílio Vaticano II, até chegar a nossos dias.
Bento XVI: “Um Estado que queira prover a tudo e tudo açambarque torna-se fim de contas uma instância burocrática (...) Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam a espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda” (2005, encíclica Deus Caritas Est, no. 28). 
O Catecismo da Igreja Católica explica o princípio de subsidiariedade ao tratar da comunidade humana. Ensina que o homem, por natureza, “tem necessidade de vida social” (no. 1879). E afirma que “uma sociedade é um conjunto de pessoas ligadas de maneira orgânica por um princípio de unidade que ultrapassa cada uma delas” (no. 1880). Mas reconhece que “certas sociedades, como a família e a cidade, correspondem mais imediatamente à natureza do homem. São-lhe necessárias. A fim de favorecer a participação do maior número na vida social, é preciso encorajar a criação de associações instituições de livre iniciativa, ‘com fins econômicos, culturais, sociais, esportivos, recreativos, profissionais, políticos, tanto no âmbito interno das comunidades políticas como no plano mundial’ (citação da encíclica Centesimus annus, no. 16, de João Paulo II, publicada em 1991)” (no. 1882).
“A socialização apresenta também perigos. Uma intervenção muito acentuada do Estado pode ameaçar a liberdade e a iniciativa pessoais. A doutrina da Igreja elaborou o chamado princípio de subsidiariedade. Segundo esse princípio, ‘uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade inferior, privando-a de suas competências, mas deve, antes, apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar sua ação com as dos outros elementos que compõem a sociedade, tendo em vista o bem comum’ (citação da encíclica Centesimus annus, no. 48)” (Catecismo da Igreja Católica no. 1883).
“O princípio de subsidiariedade opõe-se a todas as formas de coletivismo; traças os limites da intervenção do Estado; tem em vista harmonizar as relações entre os indivíduos e as sociedades; tende a instaurar uma verdadeira ordem internacional” (Catecismo da Igreja Católica, no. 1885). É certo que a “família deve ser ajudada e defendida pelas medidas sociais apropriadas”; mas “de acordo com o princípio de subsidiariedade, as comunidades mais amplas cuidarão de não usurpar seus poderes ou de interferir na vida da família” (no. 2209). O princípio de subsidiariedade é universal e há de ser aplicado em todos os campos: educação, saúde, moral, cultura, economia, habitação e recreação. 
O princípio de subsidiariedade pretende, na vida social e política: — que as iniciativas pessoais ou associadas e as atividades de corporações intermediárias sejam promovidas e, neste caso, subsidiadas pelo Estado; — que se proteja em todos os campos a liberdade da pessoa e da família; — que as iniciativas privadas e as públicas colaborem harmoniosamente na produção do bem comum; — que todo cidadão, e concretamente o povo cristão, se veja livre, em sua vida pessoal e familiar, de uma ingerência excessiva do Governo político, e possa desenvolver, até mesmo com a ajuda do Estado, sua forma própria de vida pessoal, familiar, religiosa, e associada; — que o Estado não tenha um acréscimo doentio de funcionários, assistentes, inspetores, comissões fiscalizadoras, num controle e assistencialismo agonizantes; — que não impulsione mais e mais seu poder econômico e administrativo, multiplicando os impostos contributivos, o número de leis e normas, os organismos estatais, sujeitando tudo ao seu controle, a suas licenças, a suas autorizações e subsídios, distribuídos ao seu arbítrio; — que se promova a descentralização conveniente, o pluralismo cultural, social e político, o respeito aos grupos minoritários.

A participação cívica no bem comum, a defesa da subsidiariedade e a luta contra o absolutismo do Estado, seja em formas totalitárias ou democrático-liberais, têm sido sempre um dos principais empenhos da Igreja na política. A Igreja sempre combateu toda forma de absolutismo de Estado, ainda que isso ocorra em formas encobertas com a democracia liberal. Com o passar do tempo, ela foi a primeira, e às vezes a única, a condenar o liberalismo, o nazismo, o comunismo, a democracia relativista, etcetera. Sempre afirmou a primazia original da pessoa, da família e da ordem natural. Sempre procurou a harmoniosa colaboração, na política, da esfera privada com a pública. 
Pio XII: “Uma sã democracia, fundada sobre os princípios imutáveis da lei natural e das verdades reveladas, será decididamente contrária àquela corrupção que atribui à legislação do Estado um poder sem freio e sem limites, e que faz também do regime democrático, apesar das contrárias e vãs aparências, um puro e simples sistema de absolutismo” (1944, radiomensagem Benignitas et humanitas, no. 28). João Paulo II: “uma democracia sem valores se converte facilmente num totalitarismo visível ou encoberto, como demonstra a história” (1991, encíclica Centesimus annus, no. 46); e então “a democracia se converte facilmente numa palavra vazia” (1995, encíclica Evangelium vitæ, no. 70). 
Na Idade Média cristã, a subsidiariedade era muito mais forte na sociedade do que nos tempos modernos. E, consequentemente, era menor o perigo do totalitarismo do Estado invasor. No milênio medieval da Cristandade, mais ou menos do ano 500 ao 1.500, a doutrina política ainda é sã, e mesmo que, evidentemente, não elimine totalmente injustiças, crimes e abusos, estes se dão contra a doutrina católica. Os reis cristãos — entre os quais houve não poucos santos e beatos — tinham um poder muito controlado pela Igreja, os nobres, as cortes, os grêmios e os estamentos sociais, assim como pelas leis e foros jurados, pelos usos e costumes. O campo de sua autoridade política era incomparavelmente menor que o dos governantes modernos. 

Essa é uma realidade que, por exemplo, o sacerdote jesuíta Alfredo Sáenz, comprova com dados certos em sua obra La Cristiandad, una realidad histórica (capítulo III, A ordem política da Cristandade: Fundação Gratis Date, Pamplona, 2005). Nesse livro vê até que ponto, a partir do Renascimento, a vida social e política europeia da Idade Média tem sido caluniada e falsificada. As obras de Régine Pernoud — como O que é a Idade Média?, Para acabar com a Idade Média, A mulher no tempo das catedrais — podem ser também para muitos um descobrimento da verdade social e política, cultural e estética da Idade Média cristã. 

O Estado moderno foi se formando como um Leviatã monstruoso, a partir do Renascimento. Desde então foi configurando poderes absolutos e totalitários, que arrasam cada vez mais o princípio político da subsidiariedade. Lutero começa a submeter-se aos príncipes alemães; as monarquias nacionais se tornam absolutas; os reis liberais, por meio de seus ministros maçônicos, governam para o povo (?), mas sem o povo. O josefinismo sujeita a Igreja ao Estado. O mundo do poder político vai se tornando cada vez mais obscuro e anticristão: a Revolução Francesa, a ditadura napoleônica, os Impérios, as inumeráveis guerras, o nazismo e o fascismo, os horrores da União Soviética e da China, e das nações que estavam sujeitas a elas, as guerras civis, as nações divididas em partidos contrapostos, os partidos internacionais... Essa Ordem Mundial injusta, dirigida por pensadores sinistros, leva diretamente ao século XX, o mais homicida, sem dúvida alguma, tanto pelas guerras como pelo aborto, de todos os séculos da história.

Todos os horrores aludidos procedem de erros gravíssimos na filosofia política. E pode-se afirmar que o abandono da tradição política e social da cultura católica conduz ao atropelo sistemático do princípio de subsidiariedade, e ao consequente surgimento da besta política moderna, cada vez mais poderosa. Recordarei apenas alguns pensadores mais influentes no totalitarismo da política moderna. Comprovaremos, assim, que os horrores históricos modernos não se produzem apesar da doutrina política sã, mas principalmente por causa de doutrinas falsas. 

Nicolau Maquiavel (1469-1525), florentino, a quem se deve o nome “Estado”, em sua obra O Príncipe (1513), separa a vida política do respeito a Deus e à ordem natural, e por meio da “razão de Estado” impulsiona os governantes, eliminando os limites de suas decisões. 

Thomas Hobbes (1588-1679), inglês, em seu livro Leviatã (1651), muito contrário à Igreja e ao cristianismo, é considerado um dos principais fundadores do absolutismo político moderno. 

— Jean Jacques Rousseau (1712-1778), em O Contrato Social (1761), sujeita a pessoa ao Estado pela via do contratualismo político. A pessoa se deve ao Estado e ao voto majoritário, já que “a vontade geral não pode errar”. 

Johann Fichte (1762-1814), filósofo idealista, com seus Discursos à nação alemã (1806), está na origem do nacionalismo germânico, e suas obras, como Os caracteres da época contemporânea (1806), dão fundamento ao Estado totalitário: “em nossa época, mais que qualquer outro tempo precedente [e nisso diz grande verdade], cada cidadão, com todas as suas forças, está submetido à finalidade do Estado, está completamente penetrado por ele e se converteu em seu instrumento”. 

Hegel, Georg Wilhelm Friedrich (1770-1831) leva ao extremo o absolutismo totalitário do Estado, e com uma fundamentação filosófica mais ampla e coerente vem a identificar o Estado com Deus:
“A entrada de Deus no mundo é o Estado” (em Filosofia do Direito, apêndice). O Estado é um “deus no mundo”, quer dizer, um deus imanente à realidade social política. “O homem deve ao Estado tudo o que é, e somente no Estado tem sua essência. Todo valor, toda realidade espiritual os tem o homem somente por meio do Estado”. O Estado, pois, considerado como algo divino, “deve” sujeitar a ele todas as realidades da nação e de cada pessoa.
Algumas Antiutopias, descrevendo situações sociais de controle absoluto, alertam contra os Estados totalitários, comunistas, socialistas, liberais, ditatoriais. Cito somente duas: Aldous Huxley (1894-1963), em sua obra Um mundo feliz (1932), deixa todos os indivíduos sob o absoluto poder científico e condutor de Ford, que os controla mediante o soma, alimento-medicamento-estimulan​te. E George Orwell (1903-1950), em sua novela 1984 (1949), descreve o governo do Grande Irmão, que servindo-se de uma polícia onipresente do pensamento, controla a mente e a conduta de todo o povo.

Os sonhos sempre partem de uma realidade. Esses sonhos-pesadelos sobre sociedades submetidas a poderes totalitários têm uma realidade história verdadeira de fundo: o Leviatã, os Estados modernos monstruosos, prepotentes, invasores. Esses pesadelos jamais foram sonhados no milênio da Cristandade.


José María Iraburu, sacerdote.
Pamplona, Espanha.
As ênfases no texto em negrito ou itálico são do próprio autor.
Leia na próxima Sexta feira um texto sobre o princípio de subsidiariedade e os estados liberais.

sábado, 25 de junho de 2011

06. Princípios Doutrinais, IV

Continuamos com os princípios fundamentais da doutrina política da Igreja. 

5º– A Igreja é neutra quanto à forma dos regimes políticos. Este é um princípio doutrinal que sempre foi ensinado e praticado pela Igreja. Nele se fundamenta tanto a liberdade da Igreja ante o Estado, como o legítimo pluralismo político entre os cristãos. Efetivamente, a Igreja «em virtude de sua missão e natureza, não está unida a nenhuma forma particular de civilização humana nem a sistema algum político, econômico ou social» (Vat. II, GS 42d). 

Pio XI: «a Igreja católica, não estando sob nenhum aspecto unida a uma forma de governo mais que a outra, com a condição de que fiquem a salvo os direitos de Deus e da consciência cristã, não encontra dificuldade em entender-se com as diversas instituições políticas, sejam monárquicas ou republicanas, aristocráticas ou democráticas» (1933, enc. Dilectissima Nobis 6). Vaticano II: «as modalidades concretas pelas que a comunidade política organiza sua estrutura fundamental e o equilíbrio dos poderes públicos podem ser diferentes, segundo o gênio da cada povo e a marcha de sua história» (GS 74f; cf. João XXIII, 1963, Pacem in terris 67; Catecismo 1901). 

A Igreja, por outro lado, não é neutra quanto às ideologias políticas que podem cristalizar-se depois em diversas formas de Estado. O Vaticano II e o Magistério apostólico posterior continuaram ensinando a doutrina já claramente expressada nas grandes encíclicas monográficas do século XIX e primeira metade do XX: 1878, Quod apostolici muneris (contra o socialismo laicista); 1888, Libertas præestantissimum (contra o liberalismo); 1937, Mit brennender sorge (contra o nazismo); 1937, Divini Redemptoris (contra o comunismo), etc. É evidente que algumas ideologias políticas são conciliáveis com a ordem natural e a fé católica, mas outras são inconciliáveis, e a Igreja não é neutra quanto a elas, mas as denuncia e combate. 

A Igreja sabe bem que pode haver Estados monstruosos, verdadeiras Bestas apocalípticas, que ainda que guardem formas estruturalmente legítimas, são corruptos e corruptores. O Catecismo ensina que «a autoridade só se exerce legitimamente se busca o bem comum do grupo em questão e se para alcançá-lo emprega meios moralmente lícitos. Se os dirigentes proclamarem leis injustas ou tomarem medidas contrárias à ordem moral, estas disposições não podem obrigar em consciência. “Em tal situação, a própria autoridade se desmorona por completo (plane corruit) e origina-se uma iniquidade horrível” (João XXIII, Pacem in terris 51)» (1903). 

Monarquia, aristocracia e democracia são os três tipos fundamentais de autoridade política. Em todos os regimes políticos se dão, combinados de um ou outro modo, os três princípios: monarquia – um –, aristocracia – alguns –, e democracia – todos. A diversidade de combinações possíveis destes três elementos na constituição dos Estados é inumerável, e mal admite uma tentativa de classificação. Pode haver reinos nos quais o Rei não tem praticamente poder algum. Pode haver democracias – como a dos Estados Unidos – cuja constituição dê ao Presidente um máximo de autoridade pessoal, desconhecido nos demais Estados, fora aqueles que são totalitários.

O regime político ideal é misto. Como ensina Santo Tomás, «a ótima política é aquela na qual se combinam harmoniosamente a monarquia, em que um preside, a aristocracia, na medida em que muitos mandam segundo a virtude [a especial qualidade pessoal], e a democracia, ou poder do povo, já que os governantes podem ser eleitos no povo e pelo povo» (STh I-II,105,1; cf. De Regno lib. I, caps. 1-2). 

De fato, em uma ou outra proporção, todos os Estados têm um princípio monárquico (rei, presidente, primeiro ministro, xá, governador, regente, califa, imperador), um elemento aristocrático (conselho real, conselho de ministros, nobres, partido único, deputados e senadores) e um componente democrático (eleições periódicas, assembleia nacional, representantes de tribos, de regiões, de etnias, de grêmios).

Deve eleger-se a forma concreta de governo «segundo o gênio da cada povo e a marcha de sua história» (Vat. II, GS 74f), tendo em conta sua tradição, sua cultura e também suas circunstâncias. Em situações, por exemplo, de guerra, de grandes calamidades ou de uma decomposição caótica da nação, causada às vezes por um poder democrático mal exercido, pode convir por um tempo uma forma de governo forte e personalista, necessária enquanto a crise supera-se, mas que não deve se prolongar em excesso ou se fazer dinástica. Se há de salvar-se um barco envolvido em uma tormenta terrível, governá-lo por voto em assembleia nesse caso não vale, porque se afundaria a nave durante os debates. É a hora das ordens rápidas e individuais. Pelo contrário, em tempos de paz costuma ser muito conveniente uma ampla participação dos cidadãos, que procure o bem comum.

Os cristãos devem aceitar o regime político de sua nação, dando ao César o que é do César (Mt 22,21), como já vimos (97). É o mandato de Cristo e também dos apóstolos: «submetam-se todos às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não proceda de Deus, e as que existem, por Deus foram constituídas» (Rm 13,1). Quando São Paulo mandava isto imperava Nero. Um exemplo eloquente podemos encontrar na França posterior à Revolução. Meia dúzia de regimes foram-se sucedendo em uns poucos decênios, e sempre foram reconhecidos pela Igreja. Leão XIII recorda-o: 

É preciso «aceitar sem reservas, com a lealdade perfeita que convém ao cristão, o poder civil na forma em que de fato existe. Assim foi aceite na França o primeiro Império ao dia seguinte de uma horrível e sangrenta anarquia; assim foram aceites os outros poderes, tanto monárquicos como republicanos, que se foram sucedendo até nossos dias… Por estes motivos, Nós dissemos aos católicos franceses: aceitai a República, isto é, o poder constituído e existente entre vós; respeitai-o, obedecei-o, porque representa o poder derivado de Deus» (1892, cta. Notre consolation 10-11). Já tratei de casos extremos de tirania ou anarquia, nos quais uma guerra está justificada. 

Todas as formas políticas se podem perverter, quando é perverso o espírito que as rege. A monarquia absoluta pode fazer-se tirania, o regime predominantemente aristocrático pode degradar-se em uma oligarquia injusta e opressora, bem como as formas democráticas podem dar na demagogia ou inclusive em certas modalidades encobertas de totalitarismo. A correção formal de um Estado ou de sua Constituição não garante em absoluto a bondade das leis que se gerem. 

Leão XIII: «em um regime cuja forma seja quiçá a mais excelente de todas, a legislação pode ser detestável, e, pelo contrário, dentro de um regime cuja forma seja a mais imperfeita pode se achar às vezes uma legislação excelente» (1892, enc. Au milieu des sollicitudes 26). A Constituição espanhola, em sua art. 32, estabelece que “o homem e a mulher têm direito a contrair matrimônio” (o homem e a mulher: matrimônio: está claro, não?). E a Constituição da Argentina diz em seu Preâmbulo que tudo o que faz e dispõe o faz «invocando a Deus, fonte de toda               razão e justiça». Em ambos casos, no entanto, calcando um artigo ou calcando o princípio do preâmbulo, se chegou à aberração do “matrimônio” homossexual.

A Igreja não deve se unir a nenhum regime político concreto, como se ele fosse em si o melhor, o que ela prefere, independentemente da cultura, tradição e circunstâncias de uma nação. São Pio assinalava que «há um erro e um perigo em enfeudar, por princípio, o catolicismo em uma forma de governo» (1910, cta. Notre charge apostolique 31). E quando por um tempo uma Igreja local ou uma parte do povo cristão tem incorrido nesse erro, se seguiram muito graves males. Não há que sacralizar a monarquia, nem satanizar a república. Também não há que adorar a democracia, e muito menos a democracia liberal pluripartidista, nem devem ser consideradas ilícitas as outras formas de governo. 

Quando se consagra uma forma concreta de governo, ainda que não seja na doutrina, mas sim na prática, sobrevêm muitos erros de péssimas consequências: –há nações e organismos internacionais que tentam impor a um povo um regime político que lhe é estranho; –um governo é julgado não pelos conteúdos bons ou maus de suas leis e instituições, senão por seu regime político constitucional; –pode inclusive dar-se que uma Igreja local apoie um regime «politicamente correto», que produz leis perversas, e que se oponha a outro projeto político que estima «incorreto», ainda que seja promotor de leis justas (!); –criam-se divisões muito daninhas entre os cristãos da mesma nação. Tudo isto sucede quando se esquece que «o cristão deve reconhecer a legítima pluralidade de opiniões temporais discrepantes» (Vat. II, GS 75e). 

Outra coisa diferente é que os cristãos de uma nação, ou a maioria deles, em umas determinadas circunstâncias históricas, se inclinem por uma forma política determinada e a promovam. É, pois, urgente recuperar este princípio fundamental da doutrina política da Igreja, tal como o expressa A. Desqueyrat: 

«A Igreja nunca condenou as formas jurídicas do Estado: nunca condenou a monarquia –absoluta ou moderada –, nunca condenou a aristocracia – estrita ou ampla –, nunca condenou a democracia – monárquica ou republicana –. No entanto, condenou todos os regimes que se fundamentam em uma filosofia errônea» (L’enseignement politique de l’Église, Spes 1960, Inst. Cath. de Paris, I,191). 

Prefere hoje a Igreja a democracia às outras diversas formas de governo? Circunscrevo a pergunta, por simplificar, ao âmbito das nações desenvolvidas do Ocidente. E começo por dizer que hoje a Igreja mantém como sempre sua neutralidade para com as diversas formas de governo. Nos textos que seguem pode-se comprovar que o que a Igreja certamente aprecia é a participação dos cidadãos na vida sócio-política. Mas os textos que cito, e outros semelhantes, não afirmam claramente que a democracia liberal pluripartidista – tal como se dá no Ocidente – seja uma verdadeira democracia, e que essa participação política dos cidadãos que a Igreja propugna seja nela certamente maior que em outras formas existentes ou possíveis de governo. Pelo contrário, o põem em dúvida ou o negam. 

–Vaticano II: «é necessário estimular em todos a vontade de participar nos esforços comuns. Merece louvor o modo de fazer daquelas nações nas quais a maior parte dos cidadãos participa com verdadeira liberdade na vida pública» (GS 31c). «Com o desenvolvimento cultural, econômico e social consolida-se na maioria o desejo de participar mais plenamente na ordenação da comunidade política» (73c).

–João Paulo II: «A Igreja aprecia o sistema da democracia, na medida em que assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade de eleger e controlar seus próprios governantes, ou bem a de os substituir oportunamente de maneira pacífica–. Por isto mesmo, não pode favorecer a formação de grupos dirigentes restringidos que, por interesses particulares ou por motivos ideológicos, usurpam o poder do Estado» (1991, enc. Centesimus annus 46). 

«Se hoje adverte-se um consenso quase universal sobre o valor da democracia, isto se considera um positivo “sinal dos tempos”, como também o Magistério da Igreja pôs em  relevo várias vezes (cf. … Pio XII, Radiomensagem 24-XII-1944). Mas o valor da democracia mantém-se ou cai com os valores que encarna e promove… Na base destes valores não podem estar provisórias e volúveis “maiorias” de opinião, mas só o reconhecimento de uma lei moral objetiva que, enquanto “lei natural” inscrita no coração do homem, é ponto de referência normativa da própria lei civil». Por isso, quando «o ceticismo chegar a pôr em dúvida até os princípios fundamentais da lei moral, o próprio ordenamento democrático se tremeria em seus fundamentos, se reduzindo a um puro mecanismo de regulação empírica de interesses diversos e contrapostos… Em uma situação assim, a democracia se converte facilmente em uma palavra vazia» (1995, enc. Evangelium vitæ 70). 

–Bento XVI tem advertido com frequência que uma democracia sem valores cai no relativismo, e que este conduz diretamente ao totalitarismo. Aludindo ao santo Cura d’Ars, recordava que viveu no ambiente de uma França pós revolucionária: «Se então havia uma ditadura do racionalismo, agora se registra em muitos ambientes uma espécie de ditadura do relativismo» (5-VIII-2009). Ou dito em outras palavras: «quando a lei natural e a responsabilidade que esta implica se negam, se abre dramaticamente o caminho ao relativismo ético no plano individual e ao totalitarismo do Estado no plano político» (16-VI-2010). 

Hoje a Igreja não prefere certamente uma democracia liberal, agnóstica e relativista, sustentada por uma pluralidade de partidos alternantes, a qualquer outro regime de governo que se fundamente melhor em Deus, na ordem natural e nas tradições próprias da cada povo. E há que reconhecer que hoje a grande maioria das democracias no Ocidente são liberais, agnósticas e relativistas. 
                                                  
Afirmemos, em fim, singelamente que uma democracia liberal e relativista não é propriamente uma democracia, mas uma falsificação, uma corrupção da democracia. Não poucas vezes tem sido denunciada esta realidade pelo recente Magistério apostólico de João Paulo II e de Bento XVI. Suas advertências atuais para que se dê uma democracia verdadeira vêm a ser as mesmas exigências que indicava faz anos Pio XII (1944, radiom. Benignitas et humanitas). 

O tema é muito grave, e espero, com o favor de Deus, poder tratá-lo mais amplamente em meu próximo artigo, no qual precisamente considerarei 5º.–o princípio de subsidiariedade e sua contrapartida, o totalitarismo de Estado em qualquer de suas variadas formas, também, por suposto, na democracia liberal. Em todas elas a participação real dos cidadãos na busca do bem comum é mínima. Está sequestrada pelo Estado totalitário, gerenciado abusivamente pelos partidos que estão no poder, pelo partido único ou pelo chefe popular carismático.

José María Iraburu, sacerdote.
Pamplona, Espanha.
As ênfases no texto em negrito ou itálico são do próprio autor.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

05. Princípios Doutrinais, III

Continuo expondo os princípios fundamentais da Igreja em sua doutrina sobre a política. Logicamente, a síntese que apresento se apoia principalmente nos documentos que tratam do tema com maior força magisterial: encíclicas monográficas — todas anteriores ao último Concílio —, os documentos do Concílio Vaticano II, Catecismo da Igreja e outros documentos atuais importantes. Já expus que () a autoridade política dos governantes vem de Deus; () que as leis civis têm seu fundamento na lei natural, numa ordem moral objetiva e () que deve-se desobedecer as leis injustas e combatê-las. Porém a doutrina política da Igreja leva também em conta:

4º: o princípio da tolerância e do mal menor. Nem sempre é possível fazer com que haja uma coincidência entre a ordem moral e a ordem legal da cidade secular, principalmente nas nações em que a maioria dos cidadãos, ao menos em questões políticas, são culturalmente liberais e se guiam sem referência alguma a Deus e à ordem natural. Quando se produz historicamente essa realidade sociopolítica lamentável, os cristãos não devem se conformar de modo derrotista com os males vigentes, como se estes fossem insuperáveis, mas tampouco devem pretender uma cristianização total e imediata da sociedade, na qual só se admitam leis perfeitamente conformes com a razão natural e o Evangelho. Os cristãos, com são realismo, hão de procurar o bem comum com todas as suas forças, mas ao mesmo tempo devem reconhecer o princípio da tolerância em certas questões.

Uma formulação precisa do princípio católico tradicional da tolerância e do mal menor é encontrada em Santo Tomás, que ensina a razão mais profunda desse princípio:
“Deus, mesmo sendo onipotente e sumamente bom, permite que se sucedam males no universo (podendo impedi-los), para que não sejam impedidos bens maiores ou para evitar males piores. Do mesmo modo, os que governam no regime humano toleram retamente alguns males para que não sejam impedidos outros bens ou para evitar males piores”. E cita Santo Agostinho, que considerava prudente não eliminar a prostituição (Summa Theologiæ, II - II, 10, 11). Os bordeis foram chamados de “casas de tolerância”. 
Na encíclica Libertas praestantissimum (de 1888, no. 23) Leão XIII afirma esse mesmo princípio e acrescenta: 
“Quanto maior é o mal que deve ser tolerado à força por um Estado, tanto maior é a distância que separa esse Estado do melhor regime político. Da mesma maneira, sendo a tolerância do mal um postulado próprio da prudência política, deve ficar estritamente circunscrita aos limites requeridos pela razão dessa tolerância, isto é, o bem público. Por esse motivo, se a tolerância causa danos ao bem público ou causa ao Estado males maiores, a consequência disso é sua ilicitude, porque em tais circunstâncias a tolerância deixa de ser um bem”.
No que tange à tolerância, é surpreendente o quão longe estão da prudência e da justiça da Igreja os seguidores do liberalismo. Porque ao concederem ao cidadão uma liberdade ilimitada em todas as matérias [por exemplo, leis que legalizam o divórcio, o aborto, as duplas homossexuais, a eutanásia], perdem completamente todo critério e chegam a colocar num mesmo plano de igualdade jurídica a verdade e a virtude com o erro e o vício”. 
O princípio da tolerância é mal entendido quando se afasta do realismo são, aludido anteriormente, e entra de cheio num realismo débil, que não somente produz leis imperfeitas, mas dá origem a leis injustas, criminosas e contrárias a Deus, à ordem natural e ao bem comum dos homens. A lei iníqua, nesse caso, “já não será lei, mas corrupção da lei” (iam non erit lex, sed legis corruptioSumma Theologiæ I-II, 95, 2).

Há alguns que não entendem suficientemente que as leis corruptas são corruptoras. Assim como as boas leis são caminhos que ajudam o povo a caminhar em direção ao bem, as iníquas o levam à perdição (não necessariamente, evidentemente). Muitas leis iníquas dos atuais Estados liberais — democráticos ou totalitários — são caminhos de perdição para o povo, estão totalmente privadas de validade jurídica autêntica e conduzem à degradação moral e cultural de uma nação, à sua diminuição demográfica, à sua debilitação e sujeição a outros povos mais fortes. É muito difícil considerá-las, em consciência, como males menores que devem ser tolerados. 

Os católicos devem aplicar o princípio da tolerância com um discernimento cuidadoso, que deve estar livre dos condicionamentos mundanos, que são falsos, sutis, contínuos e muito poderosos. Pode iluminar-nos nessa questão tão delicada o ensinamento concreto que dá João Paulo II ao tratar das leis reguladoras do aborto. Na encíclica Evangelium vitæ, de 1995, ele começa por advertir que “na cultura democrática de nosso tempo difundiu-se amplamente a opinião de que o ordenamento jurídico de uma sociedade deveria se limitar a perceber e assumir as convicções da maioria e, portanto, basear-se apenas no que a maioria mesma reconhece e vive como moral” (ver o número 69, da encíclica).
O Papa rechaça essas doutrinas e afirma que “a raiz comum de todas essas tendências é o relativismo ético que caracteriza muitos aspectos da cultura contemporânea. Não falta quem considere esse relativismo como uma condição da democracia, já que somente ele garantiria a tolerância, o respeito recíproco entre as pessoas e a adesão às decisões da maioria, enquanto as normas morais, consideradas objetivas e vinculantes, levariam ao autoritarismo e à intolerância” (número 70).
João Paulo II reconhece, todavia, que “certamente, a responsabilidade da lei civil é diversa e de âmbito mais limitado que a da lei moral (...) Com efeito, a função da lei civil consiste em garantir uma convivência social ordenada a uma verdadeira justiça, para que todos ‘possamos viver uma vida tranquila e agradável, com toda piedade e dignidade’ (1Carta de São Paulo a Timoteo 2, 2)” (número 71).
Mas as leis mais criminosas, como já vimos, devem ser não somente desobedecidas, mas combatidas com intensidade, já que nunca podem ser toleradas em razão do mal menor. Concretamente, segue dizendo o papa, “o aborto e a eutanásia são crimes que nenhuma lei humana pode pretender legitimar. Leis desse tipo não só não criam nenhuma obrigação de consciência, mas, pelo contrário, estabelecem uma grave e precisa obrigação de que se lhes façam oposição mediante a objeção de consciência. Desde as origens da Igreja a pregação apostólica inculcou nos cristãos o dever de obedecer às autoridades públicas legitimamente constituídas (ver a Carta de São Paulo aos Romanos 13, 1-7, e a 1 Carta de Pedro 2, 13-14), mas ao mesmo tempo ensinou firmemente que ‘deve-se obedecer antes a Deus do que aos homens’ (Atos dos Apóstolos 5, 29). Já no Antigo Testamento, precisamente em relação às ameaças contra a vida, encontramos um exemplo significativo de resistência à ordem injusta da autoridade. As parteiras dos hebreus se opuseram ao faraó, que havia ordenado matar todos os recém-nascidos varões. Elas ‘não fizeram o lhes havia mandado o rei do Egito, e pouparam a vida dos meninos’ (Livro do Êxodo 1, 17). Mas é necessário assinalar o motivo profundo de seu comportamento: ‘as parteiras tinham temor a Deus’ (ibidem)”.
“Então, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como é o da que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito submeter-se a ela, nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei semelhante, nem dar-lhe o sufrágio do próprio voto”.
Um problema concreto de consciência poderia dar-se nos casos em que um voto parlamentar resultasse determinante para favorecer uma lei mais restritiva, quer dizer, dirigida a restringir o número de abortos autorizados, como alternativa a outra lei mais permissiva já em vigor ou em fase de votação (...) No caso exposto, quando não for possível evitar ou ab-rogar completamente uma lei abortista, um parlamentar, cuja absoluta oposição pessoal ao aborto seja clara e notória a todos, pode licitamente oferecer seu apoio a propostas encaminhadas a limitar os danos dessa lei e diminuir assim os efeitos negativos no âmbito da cultura e da moralidade pública. Com efeito, agindo desse modo não se presta uma colaboração ilícita a uma lei injusta; antes bem se realiza um intento legítimo e obrigado a limitar seus aspectos iníquos” (número 73).
Fica claro, pois, este princípio doutrinal: a tolerância do mal menor em questões políticas e em outras é moralmente lícita, e às vezes é um dever de consciência, quando o cristão se vê na obrigação de escolher entre dois males, um maior e outro pior. Ainda que, tratando-se de opções políticas, possa também ser lícita às vezes a abstenção do voto. E nunca a tolerância ou a abstenção eximem do grave dever de combater as leis injustas, procurando sua derrogação. 

Os partidos que defendem sempre o mal menor, (aos que podemos chamar de “mal-menoristas”) todavia, corrompem o princípio da tolerância do mal menor quando o transformam na estratégia sistemática de sua atividade política. Javier Garisoain o explica bem em seu artigo Doutrina e tática do mal menor. Entendemos aqui por partido “mal-menorista” o partido que seja cristão-liberal, quer dizer, aquele que, tendo alguma filiação cristã — por isso chega a ver o mal como mal —e contaminado também por uma visão liberal — por isso vê o mal como menor —, considera sistematicamente o mal menor como tolerável, de tal maneira que não se empenha realmente em combatê-lo e superá-lo com o bem. Sua ideia de tolerância no é a da doutrina da Igreja, mas a do liberalismo, a do relativismo ou a dos filósofos como John Locke (na Carta sobre a intolerância, 1689). 

Um partido “mal-menorista” pode canalizar indefinidamente os votos dos católicos, tendo muito cuidado para que não se organizem para atuar com força no campo político. Talvez — principalmente se há eclesiásticos envolvidos — justifique sua posição alegando que deve-se evitar um enfrentamento da Igreja com o mundo moderno. Desse modo, colabora não somente com a degradação do mundo secular, mas também com a debilitação progressiva da Igreja. 

O “mal-menorismo” não o combate o mal, nem promove com eficácia o bem comum. Não combate com todas as forças o mal, nem o menor nem o maior. Faz do mal menor um pressuposto histórico necessário, contínuo, progressivo, irreversível e insuperável. E com o passar dos anos, optando uma e outra vez pelo mal menor entre os diversos males oferecidos como opções políticas pelos inimigos de Deus e do homem, vai retrocedendo sempre, vai descendo por uma escada de males menores cada vez maiores. O “mal-maiorismo” e o “mal-menorismo” são como o acelerador e o freio de um mesmo carro, e ambos estão de acordo em relação à direção para a qual o volante indica. 

Desse modo, o “mal-menorismo” se deixa conduzir pelos maus, que sempre tomam a iniciativa, e colabora para que o povo seja conduzido ao mal maior, ao mal comum, à corrupção da vida social, à degradação dos pensamentos e dos costumes. Passará por tudo antes de ver-se afundado no sheol da marginalização política. Está disposto a pagar qualquer tributo, contanto que se mantenha nas instituições públicas e, se possível, no poder; se não, ao menos numa oposição quantitativamente considerável. Será uma oposição que não se opõe, e que mesmo chegando ao poder, mantém as leis péssimas estabelecidas anteriormente pelos maus. Compreende-se bem que o idealismo dos jovens católicos não encontre atrativo algum num partido que, renunciando a procurar eficazmente o bem, limita-se a reduzir o mal tanto quanto seja possível. Um partido assim poderá atrair principalmente pelas vantagens que oferece no campo econômico, social e profissional.

A tolerância “mal-menorista” leva a um pacifismo extremo. Ignora que as leis injustas dos Estados monstruosos devem ser não só desobedecidas, mas também combatidas tanto quanto seja possível.

1. As batalhas armadas, é certo, como já assinalei, quase nunca podem reunir hoje as condições exigidas para uma guerra justa. Mas esses pacifistas tolerantes se envergonham até daquelas guerras que foram justas e necessárias, como as que defenderam a Europa da invasão do Islã — Poitiers, Navas de Tolosa, Lepanto. Se fosse por eles, a Europa estaria hoje não cheia de catedrais, mas de mesquitas. Mas há mais.

2. As batalhas culturais, tão decisivas, tampouco são travadas pelo “mal-menorismo”, que renuncia a apresentar um combate real no Congresso, nos meios de comunicação, nas escolas e universidades e no campo da saúde pública. Mesmo que [o “mal-menorismo”] chegue ao poder político, essas batalhas da cultura seguirão perdidas, pois, podendo fazê-lo, nem sequer as combate. Não se atreve a dizer a verdade, supondo que a conheça. Conforma-se, se é o caso de levar recursos ao Tribunal Constitucional, com organizar um Congresso acadêmico ou uma manifestação — tudo isso está bem —, e com aduzir no debate político argumentos débeis que, ao silenciar a verdade, estão de antemão condenados ao fracasso. Pensa talvez que em formas mais combativas fariam um fraco serviço à Igreja, confrontando-a com o mundo relativista imperante, e que estabeleceria uma tensa divisão onde há pacífica unanimidade social no erro liberal-relativista... Eu não chego a imaginar que erros e horrores pensa, mas é certo e comprovável que:

O “mal-menorismo” se nega a dar testemunho da verdade, e isto lhe torna impotente para procurar o bem, que nem sequer intenta [procurar]. “Eu vim ao mundo para dar testemunho da verdade”, disse Cristo (Evangelho de São João 18, 37), e essa é a vocação de todo cristão. Mas um partido político que não se atreve a dizer publicamente a verdade; que não se atreve a afirmar com força o vínculo necessário que sujeita o mundo criado a seu Criador (constituição dogmática Lumen gentium no. 36); que se autoproíbe até mesmo mencionar o nome de Deus, exilando-O da vida política; que se abstém de aduzir os argumentos poderosíssimos da ordem natural e das tradições nacionais; e que, ao contrário, durante decênios se orienta pela tolerância do mal menor, limitando-se a aceitá-lo — primeiro, talvez, como hipótese possibilista —, e finalmente a apoiá-lo — como tese liberal que assimila —, é um partido que na realidade se submete à ditadura do relativismo, própria de uma democracia liberal. É uma peste para a nação. 

Deste modo, o “mal-menorismo” colabora para que o voto dos católicos favoreça a ruína acelerada da nação, consegue a anulação total dos católicos na vida pública dos povos e põe a espécie do político católico em grave perigo de extinção. Há alguns anos a representante de um partido “malmenorista” respondia aos jornalistas que lhe perguntavam por que seu partido se opunha a uma ampliação dos pressupostos legais para o aborto: “Pensamos que não há uma verdadeira demanda social por ela”. Inefável... Os políticos católicos incapazes de dar testemunho da verdade irão — e já foram — para a “lata de lixo da história” (como afirmava Leão Trotsky). 

Tudo isso que digo pode ser verificado, por exemplo, na legalização do “matrimônio” homossexual. As leis pró-gays sempre têm sido possibilitadas por sucessivas batalhas culturais prévias, nas quais se integravam escritores, cantores, partidos políticos de esquerda, atores, cinema, televisão e imprensa. As conquistas-derrotas ocorridas no campo legal têm sido sempre precedidas por vitórias-derrotas no campo sociocultural. Ante esse processo óbvio, normalmente os “mal-menoristas” não combatiam de frente nenhuma dessas batalhas. Quase nem se inteiravam delas. 

O lobby gay, com ações próprias e com as colaborações aludidas, vem impondo a mentira: a união homossexual é tão natural e sã como o matrimônio; é simplesmente uma alternativa sexual. Desse modo, consegue em poucos anos a inscrição civil, a consideração jurídica de “matrimônio”, o direito à adoção, as leis de educação que exigem o ensino de seus erros e horrores a todas as crianças e adolescentes, e a proscrição social e legal — absolutamente intolerante — de professores, escritores, sacerdotes e políticos que afirmem publicamente que o exercício da homossexualidade é um desvio doentio, que vai contra a natureza. A intolerância gay é absoluta: essas pessoas, que eles chamam de homofóbicas, podem ser multadas, depostas de seus cargos e castigadas com o cárcere. Para conseguir a não discriminação dos gays, logrou-se introduzir na legislação discriminações totalmente abusivas, que afetam principalmente políticos (como Rocco Buttiglione), sacerdotes (como o bispo André-Joseph Leónard, o pastor Ademir Kreutzfeld), professores, etcetera.

O partido político “mal-menorista” começa por silenciar a verdade: não menciona Deus, que condena os atos de homossexualidade, não se atreve nem sequer a defender a ordem natural, afirmando que enquanto a união heterossexual é sã, fecunda, boa para a sociedade, conforme com a natureza, a união homossexual, ao contrário, é doentia, insana, estéril para o bem comum e contrária à natureza. Poderia argumentar isto com muita força, porque é de sentido comum e há estudos científicos que o demonstram de modo irrefutável (ver, por exemplo, os maiores de 18 anos, Miguel Calvis, Las prácticas homosexuales). Sucede, todavia, que não é considerado politicamente correto aduzir essas verdades num debate político, nem apresentar com força uma verdadeira batalha cultural. Uma vez mais o “mal-menorismo” retrocede, perde a batalha que não travou, aceita de fato o mal menor, que aqui é maior, e adotando uma atitude débil/tolerante diante da posição forte/intolerante do lobby gay, dá a causa por perdida e deixa que o povo seja induzido pelas leis a avançar por caminhos de perdição e de ruína.

Os católicos devem negar seus votos a partidos “mal-menoristas”, pois estes nem têm força para promover o bem, nem para resistir ao mal. Na realidade, esses são partidos liberais, relativistas, pessimistas, cúmplices ativos ou passivos dos inimigos de Cristo e de Sua Igreja, sequestradores do voto católico, obstáculos especialmente eficazes para impedir todo influxo real dos católicos na vida política e, enfim, são semipelagianos, pois, fiéis à sua “evitação sistemática do martírio”, querem fazer com que na política “a parte humana” seja numerosa e respeitada pelo mundo moderno, para poder assim colaborar com a ação de Deus na procura do bem comum. Dos partidos “malmaioristas” e “malmenoristas”, libera nos, Domine!

As objeções possíveis a tudo isto são tão inumeráveis como previsíveis: “esse diagnóstico conduz à abstenção ou ao voto inútil”. Mas sobre essas e outras questões tratarei no final desta série, quando, com a ajuda de Deus, considerarei o que podemos e devemos fazer hoje os católicos na política.

A unidade nacional dos bispos em questões políticas é muito desejável e benéfica, mas nem sempre alcançam discernimentos unânimes. São muito difíceis. João Paulo II afirma uma grande verdade quando disse: “sem o auxílio da graça, os homens seriam incapazes de ‘discernir a senda frequentemente estreita entre a covardia que cede ao mal e a violência que, na ilusão de o estar combatendo, ainda o agrava mais’” (encíclica Centesimus annus, no. 25; veja também o Catecismo da Igreja Católica, no. 1889). Somente Deus pode iluminar as consciências cristãs em questões políticas, mostrando quando devem tolerar-se como males menores situações perversas ou quando há que resistir a elas, denunciá-las e combatê-las de todos os modos possíveis. E são os Santos que costumam acertar nesses problemas históricos.

Às vezes, dão-se acordos unânimes no discernimento. Os bispos polacos se mantiveram firmes ante o poder invasor comunista, e também os espanhóis de 1936 ante o mesmo perigo. Mas a divisão de opiniões é frequente. Os bispos colombianos do final do século XIX viam o perigo do liberalismo entre os católicos, mas nem todos lutaram contra ele, como o bispo de Pasto, Santo Ezequiel Moreno (+ 1906), que se não renunciou ao ver-se tão desamparado, foi por ordem pessoal de Leão XIII. Na rebelião da Cristiada mexicana (1926-1929), nem todos os bispos apoiavam os cristeros, mesmo que alguns sim, como São Rafael (+1938). Todos os bispos alemães entendiam que o nazismo perseguia o cristianismo, mas nem todos o combateram abertamente, como o bispo de Munster, o Beato Cardeal Clemens von Galen (+1946). Quando a França foi ocupada pela Alemanha, alguns bispos colaboraram com o regime de Vichy, submetido aos nazistas, e outros não; e o general De Gaulle, tendo chegado à presidência, fez todos os bispos colaboracionistas renunciarem. À Constituição espanhola agnóstica de 1978 se opôs o Cardeal Primaz, Mons. Marcelo González Martín, com mais uns poucos bispos; a maioria considerou que convinha aceitá-la como mal menor.

E também hoje se dão entre os bispos discernimentos prudenciais diferentes em questões políticas — isto é óbvio —, pois uns consideram como um mal menor tolerável aquilo que outros consideram como um mal maior intolerável. Essas diferenças de opinião, que tantas vezes se produziram na história, hoje se fazem mais frequentes e profundas por serem insuficientes na Igreja a atualização e o desenvolvimento de sua doutrina tradicional política. 

No século passado, no final dos anos 80, quando a Besta comunista foi derrubada, vários bispos ortodoxos tiveram de renunciar por ter colaborado ativa ou passivamente com o governo marxista. Outros, ao invés disso, não colaboraram, mantiveram-se distantes ou estiveram em campos de concentração. Também um dia, quando for derrubada a Besta liberal, distinguir-se-á entre aqueles bispos que resistiram a ela e a combateram com maior ou menor força, e aqueles que optaram por colaborar com ela, ao menos passivamente, salvando a doutrina, supostamente, mas tolerando muitas injustiças como males menores, dissuadindo os católicos de combatê-la frontalmente e renunciando, sobretudo, a denunciá-la como um sistema “intrinsecamente perverso”, sem Deus e sem ordem natural e, portanto, corrupto e corruptor.

Dessa forma, o que os católicos devemos fazer hoje ante a Besta apocalíptica dos Estados liberais, que ignoram Deus e a ordem natural, e que engendram leis iníquas, uma após a outra? Em cada nação se dão circunstâncias e possibilidades diversas. Eu expressei o meu pensamento, que é o de muitos católicos — com eles aprendi —, ainda que não seja certamente o da maioria. Dá-nos, Senhor, tua luz e tua verdade.


José María Iraburu, sacerdote.
Pamplona, Espanha.
As ênfases no texto em negrito ou itálico são do próprio autor.
Leia na próxima Sexta feira "princípios doutrinais para o católico na política", quarta parte.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

04. Princípios Doutrinais, II

Os pagãos têm muito mais verdade que os cristãos apóstatas. Isto poderia ser expressado com a ajuda de uma parábola.

Num cão muito esperto, por meio de uma operação cerebral maravilhosa, foi infundido o espírito humano, e ele chega assim à inteligência da razão e à liberdade da vontade. Um dia, contudo, abrumado pelas responsabilidades próprias de sua nova condição inteligente e livre, exige que lhe retirem o espírito humano. Mas então não recupera suas habilidades animais: já não distingue pelo olfato se um alimento é bom ou não, já não sabe encontrar o caminho de regresso à casa de seu amo… Torna-se um animal excepcionalmente bobo, porque tendo sido chamado a viver segundo a razão, renunciou a esta, e agora não lhe funciona nem a razão, nem o instinto animal.

De modo semelhante, a razão do pagão se ilumina ao máximo quando pela fé alcança a vida cristã, chegando a ser "nova criatura" (2 Carta de São Paulo aos Corintios 5, 17; Carta de São Paulo aos Efésios 2, 15). Mas se se afunda voluntariamente na apostasia, vem a ser um homem excepcionalmente imbecil, que, tendo renunciado à luz da fé, quase não tem uso da razão. Isso explica, por exemplo, a morte da filosofia no Ocidente.

Os Estados modernos, antes cristãos e agora apóstatas, ficaram idiotizados, e geram continuamente leis gravemente injustas, piores que as dos Estados pagãos. Não se regem pela fé, mas tampouco pela razão, pois esta se lhes atrofiou. "Alardeando ser sábios, tornaram-se tolos" (Carta de São Paulo aos Romanos 1, 22). Quando consideramos o pensamento dos antigos filósofos pagãos – Platão, Aristóteles, Cícero, Marco Aurélio – vemos que, ainda que não livres de erros, tinham uso da razão, pensavam e ensinavam doutrinas filosóficas e morais incomparavelmente mais verdadeiras que as que hoje regem as nações apóstatas. Corruptio optimi pessima. Estas chegaram a cúmulos de imbecilidade e ignomínia nunca alcançados pelos povos pagãos. O Direito Romano era mais justo, mais conforme ao sentido comum e à natureza humana, que o que hoje rege as nações modernas. Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), por exemplo, chega a conhecer e a ensinar que há uma lei eterna, que rege o mundo pela lei natural, na qual há de fundamentar-se toda lei positiva promulgada pelos homens:
"A opinião dos homens mais sábios foi de que a Lei não é um produto do pensamento humano, nem uma promulgação dos povos, mas algo eterno, que rege o universo inteiro mediante sua sabedoria, que manda e proíbe" (De legibus 2.4.8). Algumas leis ditadas pelo povo (plebs), se se opõem a essa ordem suprema permanente, "não merecem mais ser chamadas leis do que as regras acordadas por uma banda de ladrões em sua assembleia" (2.5.13). "O cúmulo da estupidez é crer que tudo o que se acha nos costumes ou nas leis das nações é justo" (1.14.42).
Apagaram-se essas luzes no mundo da apostasia ocidental moderna. Os políticos já não têm uso da razão, e "resistem à verdade, como homens de entendimento corrompido" (2 Carta a Timóteo 1, 7). Geram cada vez mais leis, e cada vez piores. E os cristãos liberais dedicados à política, fazendo-se seus cúmplices, silenciam sistematicamente a Deus e à ordem natural – se é que os conhecem –, e entram assim com eles na densa escuridão do poder das trevas. Que devem fazer então os cristãos diante das leis perpetradas pelo grande Leviatã dos Estados modernos, sejam totalitários, sejam liberais?

[No artigo passado, comecei  explicar alguns dos princípios da doutrina católica sobre a política, tratei (1) da origem Divina da autoridade, e (2) do fundamento das leis civis numa ordem moral objetiva, instaurada por Deus, agora vamos abordar um terceiro princípio doutrinal:]

3º. As leis injustas devem ser resistidas. O homem se aperfeiçoa obedecendo às leis lícitas das autoridades civis legítimas, porque com essa obediência cívica "obedece a Deus" (1 Carta de Pedro 2, 13-17; Carta de São Paulo aos Romanos 13, 1-7) e colabora com o bem comum dos cidadãos. Pelo contrário, quando o cidadão obedece a leis criminosas se embrutece e degrada, se faz cúmplice de graves maldades, e para evitar o martírio, a cruz da verdade, vende sua alma ao diabo, e dá culto idolátrico aos homens malvados que lhe estão sujeitos. Desse modo, "adora e serve à criatura em vez do Criador, que é bendito pelos séculos. Amém" (Carta de São Paulo aos Romanos 1, 25).

A Igreja oferece em sua história um grande exemplo tanto de obediência cívica, enquanto ela é devida, como de resistência passiva até a morte, no caso dos mártires, quando a obediência se faz iniquidade. Com efeito, são inumeráveis os exemplos dos mártires cristãos, que antes de ser infiéis a seu Senhor e a sua consciência, resistiram e resistem heroicamente às leis injustas, enfrentando o cárcere, o desterro, o despojamento de seus bens ou a morte. E não esqueçamos que dos 70 milhões de cristãos que foram mártires na história da Igreja, 45 milhões e meio o foram no século XX, quer dizer, 65% (Antonio Socci, I nuovi perseguitati. Indagine sulla intolleranza anticristiana nel nuovo secolo do martirio, Piemme 2002, 159 pgs.).

A Igreja católica sempre mandou que não sejam obedecidas as leis injustas. O Catecismo da Igreja Católica ensina que "o cidadão tem obrigação em consciência de não seguir as prescrições das autoridades civis quando esses preceitos são contrários às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho" (No. 2242). Esses ensinamentos se multiplicaram, logicamente, desde a Revolução Francesa, desde a apostasia das nações de antiga filiação cristã, ao iniciarem-se os Estados liberais e posteriormente os Estados totalitários, uns e outros anticristãos, sem Deus e sem ordem natural.

Contra os modernos Estados liberais recordo a doutrina de Leão XIII:
"Todas as coisas nas quais a lei natural ou a vontade de Deus resultam violadas não podem ser mandadas nem executadas… pois 'é necessário obedecer a Deus antes que aos homens' (Evangelho de São Mateus 22, 21). E os que assim obram não podem ser acusados de quebrar a obediência devida, porque se a vontade dos governantes contradiz a vontade e as leis de Deus, os governantes extrapolam o campo de seu poder e pervertem a justiça. Nem nesse caso pode valer sua autoridade, porque esta autoridade, sem a justiça, é nula" (encíclica Nôtre consolation, No. 17, de 1892; ver também encíclica Diuturnum illud, No. 11, de 1881; encíclica Libertas praestantissimum, Nos. 10 e 21, de 1888; encíclica Au milieu des sollicitudes, Nos. 31 e 32, de 1892).
Contra os modernos Estados totalitários, recordo o ensinamento de Pio XI, sobretudo as grandes encíclicas Mit brennender Sorge (de 1937), contra o nazismo, e a encíclica Divini Redemptoris (de 1937), sobre o comunismo ateu. O ensinamento pontifício contra o nazismo tem hoje especial vigência no âmbito daquelas democracias liberais que invadem a sociedade, produzindo uma lei criminosa atrás de outra:
Há de considerar-se sempre o "direito natural, impresso pelo próprio Criador nas tábuas do coração humano, e que a sã razão humana, não obscurecida por pecados e paixões, é capaz de descobrir. À luz das normas deste direito natural pode ser avaliado todo direito positivo, e por conseguinte a legitimidade do mandato e a obrigação de cumpi-lo. As leis humanas que estão em oposição insolúvel com o direito natural padecem de um vício original que não se pode subsanar" com nada (encíclicas Mit brennender Sorge, No. 35).
Concretamente, as leis acerca da educação que estejam "em contradição com o direito natural são íntima e essencialmente imorais" (No. 37). "É dever de todo crente separar claramente sua responsabilidade da parte contrária, e sua consciência de toda pecaminosa colaboração em tão nefasta destruição" (No. 48).
É preciso, pois, que os cidadãos resistam às leis injustas, "se é que não se quer que sobrevenha uma ingente catástrofe ou uma decadência indescritível" (No. 22), consequências do nazismo, e hoje das democracias liberais. "Fomentar o abandono das diretrizes eternas de uma doutrina moral objetiva para a formação das consciências e para o enobrecimento da vida em todos seus planos e ordenamentos, é um atentado criminoso contra o porvir do povo, cujos tristes frutos serão muito amargos para as gerações futuras" (No. 34).
Neste marco sócio-político tão degradante, o Papa expressa sua gratidão e admiração por aqueles cristãos que, por ser fiéis a sua consciência, "fizeram-se dignos de sofrer, pela causa de Deus, sacrifícios e dores" (No. 17). "Com pressões ocultas e manifestas, com intimidações, com perspectivas de vantagens econômicas, profissionais, cívicas ou de outra espécie, a adesão dos católicos a sua fé – e singularmente a de algumas classes de funcionários católicos – se acha submetida a uma violência tão ilegal como inumana. Nós, com paterna emoção, sentimos e sofremos profundamente com os que pagaram tão caro preço sua adesão a Cristo e à Igreja; mas chegamos já a tal ponto, em que está em jogo o último fim e o mais alto, a salvação ou a condenação" (No. 24).
Santo Tomás de Aquino ensina que as leis criminosas, ao ir contra Deus e a ordem natural, são pseudo-leis, não são propriamente leis: "são mais violências que leis, porque, como diz Santo Agostinho, 'a lei, se não é justa, não parece que seja lei'" (Summa Theologiæ I-II, 96). Obedecer a essas pseudo-leis poderá salvar nosso corpo, nossos interesses temporais, mas perderá nossa alma. Devem ser em consciência desobedecidas, resistidas, sem dar-lhes cumprimento, pois de outro modo nos faríamos cúmplices de maldades criminosas. Vejamo-lo em algumas situações concretas.

As obrigações legais não eximem os cristãos de suas obrigações morais de consciência, quando são obrigações que se contrapõem. Ponho somente dois exemplos:

Um Chefe de Estado não deve em consciência firmar uma lei criminosa sobre o aborto, ainda que esteja obrigado a isso pela Constituição. Com sua ação estaria colaborando com a produção de um mal gravíssimo de forma voluntaria, direta e premeditada. A obrigação legal que lhe obriga a fazê-lo de nenhum modo lhe exime da obrigação moral pessoal à hora de firmar uma lei homicida e repugnante.

Um médico de nenhum modo deve procurar um aborto, ainda que a lei lhe obrigue a fazê-lo. Já sabemos – neste segundo caso com mais certeza –, que a própria lei canônica da Igreja considera gravemente imoral a participação de médicos e enfermeiras em abortos, e a obrigação legal que pudesse exigir-lhes essa ação criminosa não lhes exime da excomunhão automática, latæ sententiæ. Algo semelhante, mutatis mutandis, haverá que dizer de funcionários obrigados legalmente a celebrar "matrimônios" homossexuais, de mestres e professores obrigados legalmente a ensinar doutrinas falsas, gravemente nocivas, etcetera.

E não basta desobedecer as leis injustas; há que combatê-las com todas as forças, procurando sua derrogação de todos os modos possíveis: reuniões de oração, campanhas de opinião, atos legítimos de desobediência civil, manifestações públicas, coleta de assinaturas para um referendo, publicação de artigos nos meios de comunicação, greves, congressos e atos que tenham difusão midiática. E ainda mais:

Os cristãos não devem dar seu voto a partidos políticos que produzem leis criminosas ou que as mantêm vigentes, podendo derrogá-las. E menos ainda devem militar nesses partidos, ainda que isso lhes prive de grandes vantagens sociais e econômicas. Pelo contrario, eles estão obrigados a denunciar a imoralidade desses partidos, devem combatê-los, desmascará-los – se estão disfarçados – e desprestigiá-los por todos os meios lícitos e legais. A Nota doutrinal sobre algumas questões relativas ao compromisso e à conduta dos católicos na vida política, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 24 de novembro de 2002, o ensina claramente:
"A consciência cristã bem formada não permite a ninguém favorecer com o próprio voto a realização de um programa político ou a aprovação de uma lei particular que contenham propostas alternativas ou contrárias aos conteúdos fundamentais da fé e da moral… O compromisso político a favor de um aspecto isolado da doutrina social da Igreja não basta para satisfazer a responsabilidade da busca do bem comum em sua totalidade… Quando a ação política se liga a princípios morais que não admitem derrogações, exceções ou compromisso algum, é que o empenho dos católicos se faz mais evidente e carregado de responsabilidade. Diante destas exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis, com efeito, os crentes devem saber que está em jogo a essência da ordem moral, que concerne ao bem integral da pessoa. Esse é o caso das leis civis", segue dizendo a Nota, em matérias como aborto e eutanásia, falsificação grave do matrimônio e da família, educação dos filhos, tutela de menores, escravidão, liberdade religiosa, economia a serviço da justiça social, o valor da paz (No. 4 do documento).
Todos os governos são "intrinsecamente perversos" se prescindem de Deus e da ordem moral natural e objetiva. Quando eu tratar dos diversos regimes políticos, comprovaremos que essa perversão pode dar-se e se dá em totalitarismos comunistas ou nazis, em democracias liberais, em ditaduras de partidos únicos ou de líderes populares. A todas essas formas de governo são aplicáveis as palavras que Pio XI refere ao comunismo marxista:
"Procurai, veneráveis irmãos, com sumo cuidado que os fiéis não se deixem enganar. O comunismo é intrinsecamente perverso ('communismus cum intrinsecus sit pravus'), e não se pode admitir que colaborem com o comunismo em terreno algum os que querem salvar da ruína a civilização cristã" e o bem comum dos povos! E ainda Pio XI acrescenta uma profecia, que teve e tem cumprimento: "Quanto mais antiga e luminosa seja a civilização criada pelo cristianismo nas nações em que o comunismo logre penetrar, tanto maior será a devastação que nelas exercerá o ódio do ateísmo comunista" (encíclica Divini Redemptoris, No. 60, de 1937).
Também a guerra pode ser lícita para combater leis e governos injustos, que levam um povo à degradação moral e à ruína. Pio XI na encíclica Firmissimam constantiam, de 1937, dirigida aos Bispos do México, seguindo a doutrina tradicional, ensina que "quando se atacam as liberdades originárias da ordem religiosa e civil, não podem suportá-lo passivamente os cidadãos católicos". E nesse texto indica as condições necessárias para que seja lícita uma resistência ativa e armada. É o ensinamento atual que expõe o Catecismo da Igreja Católica:
"A resistência à opressão do poder político não recorrerá legitimamente às armas, senão nas seguintes condições: 1) em caso de violações certas, graves e prolongadas dos direitos fundamentais; 2) depois de ter esgotado todos os outros recursos; 3) se não provocar desordens piores; 4) se houver esperança fundada de êxito; 5) e se for impossível prever razoavelmente soluções melhores" (No. 2243).
É fora de dúvida, por exemplo, que um governo que promove e financia centenas de milhares de abortos, e que converte em "direito" esses assassinatos, comete "violações certas, graves e prolongadas de direitos fundamentais dos cidadãos", concretamente dos mais pobres e inválidos, dos mais necessitados de proteção legal. E também é indubitável que podem dar-se e deram-se circunstâncias históricas em que o povo cristão deve em consciência levantar-se em armas e rebelar-se, como os Macabeus, arriscando com isso suas vidas e seus bens materiais pela causa de Deus e pelo bem comum da nação. Mas atualmente, pelo contrário, quase nunca podem dar-se nas nações as outras condições exigidas para um lícito levantamento do povo em armas. São nações tão sujeitas ao governo do Príncipe deste mundo, Satanás, que é quase impossível que se deem nelas as condições terceira e quarta.

De outras graves questões, como o martírio, a objeção de consciência, os combates jurídicos, as associações católicas sociais e políticas, falarei, com o favor de Deus, ao final desta série, quando tratar mais diretamente do quê devemos fazer hoje os católicos na vida política. Agora estou expondo os princípios doutrinais da Igreja em matéria política.

José María Iraburu, sacerdote.
Pamplona, Espanha.
As ênfases no texto em negrito ou itálico são do próprio autor.
Leia na próxima Sexta feira "princípios doutrinais para o católico na política", terceira parte.