O
Estado laico e o Estado
laicista. A Igreja sempre ensinou que o poder religioso e o
poder civil são distintos, e que ambos devem colaborar assiduamente,
pois os dois estão a serviço do homem e da sociedade. A
descristianização progressiva das nações no Ocidente foi levando,
primeiro de fato, e por convicção depois, a considerar a separação do
Estado e da Igreja como um valor positivo. Contudo, na realidade
histórica, essa separação veio de fato a entender-se umas vezes como não-colaboração,
e outras como oposição, isto é, como laicismo. Não
obstante, se foi impondo entre os católicos liberais – hoje quase todos o
são em matérias políticas – a convicção de que, dentro do pluralismo
cultural das sociedades atuais do Ocidente, há que promover o Estado
laico, rechaçando, isso sim, o Estado laicista. A «sã laicidade» se
contrapõe assim ao «laicismo». Mas esta afirmação há de ser
precisada em dois pontos principais.
–1º. O
«Estado laico» nunca foi proposto como ideal na
doutrina política da Igreja. E a expressão «sã laicidade»
se empregou sempre em contraposição ao «laicismo hostil». Não foi
integrada sistematicamente, por meio de encíclicas ou documentos
monográficos importantes, na doutrina política da Igreja. Antes, foi
usada de modo ocasional em atos civis e diplomáticos. Mas a doutrina
política da Igreja não se deve buscá-la em discursos pontifícios de
cortesia, ou na saudação a um Presidente, ou na breve alocução do Papa
em um aeroporto.
Como é lógico, contudo, os políticos
católicos liberais
malminoristas, isto é, quase todos os católicos políticos, tomaram
atualmente o lema como bandeira: o Estado deve ser laico, mas não
laicista. Na realidade esse é um princípio falso, que extingue a
atividade política dos católicos, e leva o povo cristão a uma apostasia
cada vez mais profunda, através da secularização progressiva da
sociedade, cada vez mais fechada a Deus.
Pio XII, depois dos horrores da II Guerra Mundial, no
ambiente
esperançoso que trouxeram as democracias liberais vitoriosas, aludiu
positivamente a uma «legítima e sã laicidade» da comunidade
política (Disc. à colônia de Las Marcas em Roma 23-III-1958). E
nos últimos decênios, de vez em quando, aparece a expressão em
discursos dos Papas, usada sempre, como digo, em contraposição ao «laicismo ideológico
ou separação hostil entre as instituições civis e as confissões
religiosas» (João Paulo II, exort. apost. Ecclesia in Europa 117).
Bento XVI, p. ex., ao regressar a Roma depois de uma viagem
aos
Estados Unidos, disse em uma Alocução geral (30-IV-2008): «No encontro
com o senhor Presidente, em sua residência, rendi homenagem a esse
grande país, que desde os inicios se edificou sobre a base da feliz
conjugação entre princípios religiosos, éticos e políticos, e que
continua sendo um exemplo válido de sã laicidade, em que a
dimensão religiosa, na diversidade de suas expressões, não só se tolera,
mas também se valoriza como “alma” da nação e garantia fundamental dos
direitos e dos deveres do homem».
A
afirmação que sublinhei pode entender-se referida «ao ideal dos
fundadores», «à alma do povo» ou a suas «tradições» próprias, mas
ocasionaria certa perplexidade se se aplicasse à atual Administração
política da nação. Não podemos ignorar que os Estados Unidos, com suas
potentíssimas fundações, com as entidades nacionais e internacionais que
promove, e também às vezes com o apoio e financiamento do Governo de
turno, encabeça no mundo a difusão de gravíssimos males: anticoncepção,
abortos, ideologia do gênero, etc. E neste sentido não é «um exemplo
válido de sã laicidade». Em todo caso, o próprio Bento XVI, em um
discurso que cito ao fim deste artigo, nos explica com grande precisão e
claridade o verdadeiro significado da laicidade e da sã
laicidade.
–2º. Todos os Estados laicos são
laicistas. Don José
María Petit Sullá, de grata memoria (+2007; Schola Cordis Iesu,
Sociedad Tomista Internacional, catedrático de Filosofia na Universidade
de Barcelona), dizia que «um Estado laico –
totalitário ou democrático – não pode legislar mais que de acordo com o
princípio de que a sociedade, que ele rege, há de ser laica. E
isto implica que velará para que não se faça presente a religião e a
Igreja nesta sociedade civil»; isto é, será um Estado laicista.
«Uma sociedade laica não é um terreno comum a crentes e
não
crentes. O sofisma se reduz a algo tão simples como absurdo.
Quer-se introduzir a ideia de que, sendo a afirmação da existência de
Deus uma “opção” não compartilhada por todos, o terreno comum entre
dizer “Deus existe” e a proposição “Deus não existe” é “organizemos a
sociedade sobre a base comum de que Deus não existe”. Base comum?… Não
existe una base comum a duas proposições contraditórias. E a que se
escolheu e se impõe é “Deus não existe”. A proposta de um Estado
laico não laicista é um impossível lógico. Todo Estado
laico é, pelo mero fato de sê-lo, um Estado laicista, isto é, que
tende sistematicamente a produzir uma sociedade laica, isto é, a separar
os homens da religião e, em definitiva, de Deus» (¿Existe un Estado
laico no laicista? em «Cristiandad» nº 882, I-2005).
É laicista o Estado que não cumpre as obrigações que tem
para
com Deus, Cristo e a Igreja, e que em seguida enumero.
–É laicista o Estado laico que não cumpre «o dever de
render a
Deus um culto autêntico [como] corresponde ao homem individual e
socialmente» (Catecismo 2105). Quiçá permita a
liberdade de cultos sem problemas, mas enquanto Estado, se nega a si
mesmo até a possibilidade de pronunciar publicamente o nome de Deus.
Contudo, esta situação para São Paulo é «inescusável, porquanto conhecendo
a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo
contrário, extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes
obscureceu o coração insensato. Trocaram a verdade de Deus
pela mentira, e adoraram e serviram à criatura em vez do Criador, que
es bendito pelos séculos. Amém! Por isso Deus os entregou às paixões
vergonhosas» (Rm 1,19-26).
–É laicista o Estado laico que
prescinde de Deus na edificação da
cidade temporal, «como se não existisse». Que esta hipótese
oriente sistematicamente a atividade política é inadmissível: é culpável
e ateizante.
João XXIII: «a insensatez mais
característica de nossa época consiste
no intento de estabelecer uma ordem temporal sólida e proveitosa
sem apoiá-la em seu fundamento indispensável, ou, o que é o mesmo,
prescindindo de Deus; e querer exaltar a grandeza do homem cegando a
fonte da qual brota e se nutre, isto é, obstaculizando e, se fosse
possível, aniquilando a tendência inata da alma para Deus. Os
acontecimentos de nossa época, contudo, que cortaram em flor as
esperanças de muitos e arrancaram lágrimas a não poucos, confirmam a
verdade da Escritura: “Se o Senhor não constrói a casa, em vão se cansam
os pedreiros”» (enc. Mater et magistra 217).
Concílio Vaticano II: «se autonomia do temporal quer dizer
que a
realidade criada é independente de Deus e que os homens podem usá-la sem
referência ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a
falsidade de tais asserções. A criatura sem o Criador desaparece» (GS 36).
–É laicista o Estado laico que não reconhece mais que um
Ser
supremo no sentido deísta, isto é, em referência a um Deus que
existe, mas que não atua em nada do curso das realidades históricas.
Isso permite ao Estado reduzir a zero a influência do Criador na
cultura, nas leis e na sociedade do mundo que Ele criou e que conserva
no ser e a vida.
–É laicista o Estado laico que
reconhece a Deus, mas rechaça a
Cristo e à Igreja, que são para os homens a plena epifania do único
Deus verdadeiro.
«É preciso que a concepção cristã da
vida e os ensinamentos
morais da Igreja continuem sendo os valores essenciais que inspirem
todas as personas e grupos que trabalham pelo bem da nação… A
liberdade humana e seu exercício no campo da vida individual, familiar e
social, assim como a legislação que serve de marco para a convivência
na comunidade política, encontram seu ponto de referência e sua justa
medida na verdade sobre Deus e sobre o homem» (João Paulo II, ao
presidente de Argentina 17-XII-1993).
–É laicista o Estado laico que não favorece na nação a
vida
religiosa. Para que um Estado laico seja lícito não basta que permita e não
persiga a religião, pois além disso tem o dever de protegê-la
e ajudá-la. A doutrina tradicional da Igreja neste ponto,
amplamente exposta (por exemplo, Leão XIII, enc. Immortale Dei 3-9),
é reiterada pelo Vaticano II: «o poder civil, cujo fim próprio é cuidar
do bem comum temporal, certamente, deve reconhecer a
vida religiosa dos cidadãos e favorecê-la» (DH 1).
–É laicista o Estado laico que não se fundamenta nos
princípios
objetivos da lei natural, que prescinde dela ou a nega, vindo a
estabelecer necessariamente na nação a ditadura do relativismo.
Como dizia João Paulo II, «uma política privada de princípios éticos
sãos leva inevitavelmente ao declínio da vida social e à violação da
dignidade e dos direitos da pessoa humana» (Disc. aos Bispos da Polônia
15-I-1993). Concretamente, um Estado abortista é um Estado criminoso,
que permite ou favorece o assassinato de centenas de milhares de seus
cidadãos. E quase todos os Estados modernos são abortistas.
Os modernos Estados laicos, por coerência doutrinal e
prática,
não cumprem nenhuma das condições requeridas para uma sã laicidade, e
por isso são laicistas. Dito em outros termos: a sã laicidade
não existe, nem pode existir. Esta expressão, como disse, só tem um
sentido válido para contrapô-la ao laicismo abertamente hostil a Deus e
a sua Igreja. Mas não serve para mais. De nenhum modo vale como ideal
político cristão.
A doutrina de Bento XVI sobre a
«laicidade» e a «sã
laicidade», exposta em um discurso ao
congresso da União de Juristas Católicos italianos (9-XII-2006),
segundo o que eu conheço, é a mais ampla e exata das formuladas pelo
Magistério apostólico.
–A «laicidade» é uma palavra que há
de ser entendida em sua
história política real, e não simplesmente como um termo
abstrato, ao qual se pode dar este ou outro conteúdo de forma ideológica
e arbitrária. Desta convicção parte o ensinamento do Papa: «para
compreender o significado autêntico da laicidade e explicar suas
acepções atuais, é preciso ter em conta o desenvolvimento histórico
que teve o conceito.
«A laicidade, nascida
como indicação da condição do
simples fiel cristão [leigo], não pertencente nem ao clero nem ao
estado religioso, durante a Idade Média revestiu o significado de
oposição entre os poderes civis e as hierarquias eclesiásticas, e nos
tempos modernos assumiu o de exclusão da religião e de seus símbolos da
vida pública mediante seu confinamento ao âmbito privado e
à consciência individual. Assim, sucedeu que ao termo “laicidade” se
atribuiu uma acepção ideológica oposta à que tinha em sua origem.
«Em realidade, hoje a laicidade se entende comumente
como
exclusão da religião dos diversos âmbitos da sociedade e como seu
confinamento no âmbito da consciência individual. A laicidade se
manifestaria na total separação entre o Estado e a Igreja, não
tendo esta última título algum para intervir sobre temas relativos à
vida e ao comportamento dos cidadãos. A laicidade comportaria inclusive a
exclusão dos símbolos religiosos dos lugares públicos
destinados ao exercício das funções próprias da comunidade política:
escritórios, escolas, tribunais, hospitais, prisões, etc.
«Baseando-se nestas múltiplas maneiras de conceber a
laicidade, se
fala hoje de pensamento laico, de moral laica, de ciência laica, de
política laica. Com efeito, na base desta concepção há uma
visão a-religiosa da vida, do pensamento e da moral, isto é, uma visão
na qual não há lugar para Deus, para um Mistério que transcenda a
pura razão, para uma lei moral de valor absoluto, vigente em todo tempo e
em toda situação. Somente dando-se conta disto se pode medir o peso dos
problemas que guarda um termo como laicidade, que parece
ter-se convertido no emblema fundamental da pós-modernidade, em especial
da democracia moderna.
«Portanto,
todos os crentes, e de modo especial os crentes em Cristo,
têm o dever de contribuir a elaborar um conceito de laicidade que,
por una parte, reconheça a Deus e a sua lei moral, a Cristo e a sua
Igreja, o lugar que lhes corresponde na vida humana, individual e social,
e que, por outra, afirme e respeite “a legítima autonomia das
realidades terrenas”, entendendo com esta expressão – como afirma o
concílio Vaticano II – que “as coisas criadas e as próprias sociedades
gozam de leis e valores próprios que o homem há de descobrir, aplicar e
ordenar paulatinamente”» (GS 36).
–A «sã laicidade» se dá somente se se produz um conjunto
de
condições, leis e atitudes.
«Esta
afirmação conciliar [GS 36] constitui a base
doutrinal da “sã laicidade”, a qual implica que as realidades
terrenas certamente gozam de uma autonomia efetiva da esfera
eclesiástica, mas não da ordem moral. Portanto, à Igreja não
compete indicar qual ordenamento político e social se deve preferir, mas
é o povo quem deve decidir livremente os modos melhores e mais
adequados de organizar a vida política. Toda intervenção direta da
Igreja neste campo seria una ingerência indevida.
«Por outra parte, a “sã laicidade” implica que o Estado não
considere
a religião como um simples sentimento individual, que se poderia
confinar ao âmbito privado. Ao contrário, a religião, ao estar
organizada também em estruturas visíveis, como sucede com a Igreja, se
há de reconhecer como presença comunitária pública. Isto supõe,
ademais, que a cada confissão religiosa (na medida em que não esteja em
contraste com a ordem moral e não seja perigosa para a ordem pública) se
garanta o livre exercício das atividades de culto –espirituais,
culturais, educativas e caritativas – da comunidade dos crentes.
«À luz destas considerações, certamente não é expressão de
laicidade,
mas sua degeneração em laicismo, a hostilidade
contra qualquer forma de relevância política e cultural da religião; em
particular, contra a presença de todo símbolo religioso nas instituições
públicas.
«Tampouco é sinal de sã laicidade negar
à comunidade cristã, e a
quem a representa legitimamente, o direito de pronunciar-se sobre os
problemas morais que hoje interpelam a consciência de todos os
seres humanos, em particular dos legisladores e dos juristas. Com
efeito, não se trata de ingerência indevida da Igreja na atividade
legislativa, própria e exclusiva do Estado, mas da afirmação e da defesa
dos grandes valores que dão sentido à vida da pessoa e salvaguardam sua
dignidade. Estes valores, antes de ser cristãos, são humanos; por isso
diante deles não pode ficar indiferente e silenciosa a Igreja, que tem o
dever de proclamar com firmeza a verdade sobre o homem e sobre seu
destino […]
«Aos cristãos nos corresponde mostrar
que Deus, ao contrário, é amor e
quer o bem e a felicidade de todos os homens. Temos o dever de fazer
compreender que a lei moral que nos deu, e que se nos manifesta com a
voz da consciência, não tem como finalidade oprimir-nos, mas livrar-nos
do mal e fazer-nos felizes. Trata-se de mostrar que sem Deus o homem
está perdido, e que excluir a religião da vida social, em particular a
marginação do cristianismo, socava as próprias bases da convivência
humana, pois antes de ser de ordem social e política, estas bases
são de ordem moral».
Só sob o cetro de Cristo Rei é
possível a sã laicidade.
Quando Ele diz «sem mim não podeis fazer nada», suas palavras
se aplicam tanto ao aperfeiçoamento espiritual da pessoa como
ao ordenamento político da sociedade (Jo 15,5). E é
que «o mundo inteiro está em poder do Maligno» (1Jo 5,19), e unicamente o
Cristo Redentor tem poder sobre-humano e divino para liberar o homem e
as nações do cativeiro do «Príncipe [e Deus] deste mundo» (Jo 12,31;
2Cor 4,4). Quem pensa que um Estado laico pode chegar a uma sã laicidade
sem a verdade e a graça de Cristo Rei, ou é um pelagiano, no melhor dos
casos, ou no pior, um apóstata ou simplesmente um ateu.
«A Encarnação é o acontecimento decisivo da história;
dele
depende a salvação tanto do indivíduo como da sociedade em todas as suas
manifestações. Se falta Cristo, ao homem falta o caminho para alcançar a
plenitude de sua elevação e de sua realização em todas as suas
dimensões, sem excluir a esfera social e política» (João Paulo II, Ângelus 17-III-1991).
E termino com esta referência a uma realidade concreta
extremadamente
grave: o aborto. O diabo é «mentiroso e homicida desde o principio» (Jo
8,44): o diabo assegura que existe um «direito ao aborto», e assim
consegue muitos milhões anuais de homicídios. Por isso, quando
comprovamos que o conjunto unânime dos modernos Estados laicos é
confessionalmente abortista, concluímos que esses Estados mentirosos
e homicidas são diabólicos. São Estados anti-Cristo, pois
Cristo é «o Autor da vida» (At 3,15).
José María Iraburu, sacerdote.